sexta-feira, 18 de julho de 2008

EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO NA CRÔNICA LOPEANA E NA EPOPÉIA CAMONIANA


Cláudio H. de S. Pires – UESB/JEQUIÉ**

Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram:[...]
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(canto I, est. 3, vv. 1-8).


RESUMO

Neste trabalho apresentarei um estudo comparativo sobre o episodio de Inês de Castro na obra de Fernão Lopes, na qual, predominou o estilo literário Humanista/Renascentista e na epopéia Camoniana Os lusíadas em que predominou o Classicismo/Renascentista. Dentre as obras destes autores que possibilitam semelhante análise me detive na observação dos estilos dos autores, o período literário na qual se inseriram a construção da personagem Inês de Castro em ambas as obras, a contextualização histórica da vida dos autores e da construção da crônica lopeana e da epopéia camoniana e a influencia da crônica lopeana na epopéia Os lusíadas. Fiz a escolha destes tópicos por considerá-los de significativa expressão e autenticidade. Partindo do pressuposto de que a literatura retrata os problemas sócio-políticos e os conflitos amorosos, procurei observar a caracterização dos sujeitos da época como uma referência para identificar traços da concepção de arte e de conduta dos escritores Fernão Lopes e Luís de Camões, mapeando a transposição destes para as personagens que cria ou rememora. Embora tais obras tenham sido escritas em diferentes épocas, com características peculiares do seu tempo-espaço, busquei traçar um paralelo com os aspectos que se assemelham entre ambas as obras, como também, estabelecer comparações acerca de possíveis visões que venham se reproduzindo até a sociedade vigente.

Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Inês de Castro, Fernão Lopes e Luís de Camões.


1. O estilo dos autores.

Fernão Lopes

Fernão Lopes distinguiu-se de seus contemporâneos pela imparcialidade e pelo trabalho de pesquisa. Outros cronistas idealizavam os feitos da nobreza que os patrocinava; baseava-se na tradição oral, que, colhida em fontes diferentes, resultava num relato muitas vezes incongruente, quando não fantasioso.
Lopes aproximava-se mais do modelo de historiografia moderna, como se pode ver pelas seguintes qualidades de suas crônicas: foi pioneiro na investigação e pesquisa de fatos e documentos; praticou um relato objetivo e sem partidarismo; valorizou as massas populares, considerando-as co-agentes da história; além dos fatos políticos, soube entrever a importância dos fatores econômicos para a constituição de eventos históricos. Seu espírito crítico, seu conhecimento de autores clássicos (como Aristóteles e Cícero, por exemplo) e sua visão da importância homem como agente da história revelam a filiação ao espírito do Humanismo, que ele introduziu em Portugal.
Suas crônicas apresentam qualidades superiores. Como estilista, soube captar o caráter épico de seus temas e expressa-lo de forma vibrante e arrebatadora, prendendo a atenção do leitor num suspense continuo; como narrador soube dar expressão ao conteúdo emocional de sua matéria. Sua linguagem possui um poder plástico extraordinário, que permite a visualização palpitante de assembléias e festas populares; além da plasticidade, é também dramática, como se pode ver nos diálogos cheios de tensão, que Fernão Lopes empresta as figuras históricas, e nas inúmeras cenas tocantes (como as das agruras do povo por ocasião do cerco de Lisboa pelas forças de Castela), em que se pode avaliar o talento teatral do grande cronista.
Essas e outras qualidades, mais a antiguidade dos textos de Fernão Lopes levaram a crítica e a historiografia literária a chamá-lo “pai da prosa portuguesa”.
Não existem dados biográficos conclusivos a respeito de Fernão Lopes, teria nascido entre 1380-90 na cidade de Lisboa numa família de origem humilde. Por conseguinte, durante o amadurecimento do cronista, faziam-se recentes na memória dos portugueses os acontecimentos e personagens da chamada Revolução de Avis (1382-5). Este movimento foi, na verdade, um golpe sucessório auxiliado pela população camponesa, comerciantes, alguns membros da nobreza e ordens religiosas, principalmente os franciscanos, no qual ascendeu ao trono D. João, Mestre de Avis. Dessa maneira, Fernão Lopes testemunhou os eventos relatados na sua última obra, elaborada acerca de 1443, a Crônica de D. João I, e pôde consultar os protagonistas envolvidos na resistência contra Castela e na paz firmada no ano de 1411. O registro mais antigo da vida de Fernão Lopes é um documento de 1418 que atesta a função de Guarda-mor da Torre do Tombo, e escrivão de D. Duarte. Em 1419, como também escrivão de D. João I, começa, provavelmente, a redigir a Crônica dos sete primeiros reis de Portugal. Algum tempo depois, 1422, aparece intitulado escrivão da puridade do infante D. Fernando, mas somente na data de 1434, com o reinado de D. Duarte, Fernão Lopes recebe a incumbência oficial de colocar os feitos portugueses na forma de crônicas, que seria confirmada pela regência de D. Pedro e no posterior governo de Afonso V. Porém, cinco anos após o conflito de Alfarrobeira (1454), foi legalmente aposentado de todas as funções devido à idade avançada, já que desde 1451-2, Gomes Eanes Zurara assumira a composição dos textos e a guarda das escrituras.

Luís de Camões

O maior poeta da língua portuguesa, aquele que lhe deu a sua feição mais elevada, tem biografia obscura. Vários são os mistérios que pontuam a vida agitada e trágica de Camões.
Filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá Macedo, Camões descendia de família fidalga empobrecida. Alguns biógrafos pressupõem que Camões teria freqüentado a Universidade de Coimbra, por volta de 1540; outros afirmam que teria sido educado sob os cuidados de um tio clérigo, mas nada se sabe ao certo sobre isso. Seja como for, o poeta adquiriu uma formidável cultura humanística, como atestam seus versos, impregnados de erudição clássica.
Em vida Camões teve publicados quatro poemas líricos e sua epopéia clássica lusitana. Quinze anos após o falecimento do poeta, com base em cancioneiros manuscritos de procedência variada, foi publicada a primeira coletânea lírica atribuída a Camões, com o titulo Rimas de Luis de Camões. O acervo lírico camoniano de que dispomos é suficiente para consagrar Camões como um dos mais altos poetas líricos do Ocidente.
Camões é também autor de três peças de teatro, publicadas em 1587: Auto do Filodemo, El-Rei Seleuco e Anfitriões. As duas primeiras se aproximam da estrutura do teatro vicentino, enquanto a última segue o molde da comédia latina de Plauto. Mas não é no teatro que Camões se distingue como artista; o que importa conhecer e estudar é sua epopéia e sua lírica.
Para transmitir epicidade à sua mensagem, Luís de Camões recorre assiduamente à comparação baseado na Literatura da Antiguidade. Tal sucede, por exemplo, no episódio de Inês de Castro, quando o Poeta refere à orfandade dos filhos de Inês e compara a triste sorte desta mulher indefesa com o caso de Policena, que foi sacrificada por Neoptólemo por imposição de seu pai, Aquiles.
Qual contra a linda moça Polycena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena
(canto III, est. 131 vv. 1-3).

Ainda neste episódio surgem outras comparações igualmente elucidativas da posição de Luís de Camões face às ocorrências narradas. É o caso da história dos irmãos Atreu e Tiestes, que o Poeta utilizou para condenar a indignidade do ato cometido contra uma frágil donzela. Fingindo fazer as pazes com o irmão, Atreu ofereceu a Tiestes um banquete em que lhe deu a comer os próprios filhos como vingança da ligação ilícita entre o seu irmão e a sua mulher. O crime foi tão execrável que o sol se recusou a testemunhá-lo, afastando os seus raios.
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
(canto III, est. 133 vv. 1-4).

O Narrador também faz alusão aos irmãos que fundaram a cidade de Roma.
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como co a mãe de Nino já mostraram,
E cós irmãos que Roma edificaram:
(canto III, est. 126 vv. 5-8).

Luís de Camões faz o paralelo entre este caso e o martírio de Inês, considerando-os semelhantes a nível de atrocidades cometidas.
Neste episódio, apesar de se basear na verdade histórica, Luís de Camões também recorre à mitificação dos acontecimentos para sensibilizar o leitor. Ao desfigurar a realidade, o Poeta embeleza magnificamente o seu relato, apresentando, com um misto de veracidade e de lenda, uma das mais famosas e impressionantes histórias de Amor.
Considerando que a análise apresentada é bastante resumida, diante da importância de Os Lusíadas e o seu autor para a história da Literatura, julgamos ser válido ressaltar que: Camões, homem de sólida formação cultural, atento aos valores estéticos do classicismo literário e com ideais humanistas, de fato, soube interpretar o sentimento de orgulho nacional, resultante da consciência de que durante algum tempo, Portugal foi capaz de se destacar das demais nações européias.

2. O período literário no qual se inserem Fernão Lopes e Luiz de Camões.

Fernão Lopes

Humanismo é o nome de um movimento intelectual, uma doutrina filosófica e uma postura artística que representam a transição entre a cultura européia medieval e a do Renascimento. Teve inicio na Itália, entre o fim do século XIII e o inicio do século XIV, no outono da Idade Média.
Os Humanistas trouxeram de novo uma atitude de liberdade intelectual de que a Escolástica¹ não dispunha. Essa independência levou a conquistas que abalaram o teocentrismo. Entre elas, uma das mais expressivas é a da valorização do homem e da natureza.
A ideologia do teocentrismo dominou a cultura da Europa medieval. Como o nome diz, Deus é o centro. Tudo deve estar voltado para ele. A matéria deve ser desprezada e reprimida, pois suas necessidades grosseiras dificultam a ligação com o mundo do espírito, que é o de Deus. Como o reino da matéria é a natureza, é ela que deve ser negada. Assim, a doutrina teocêntrica postula que o homem deve lutar contra a natureza corpórea degradante para cuidar somente da vida espiritual, sob a orientação da igreja.
Os humanistas adotaram outra visão. Aprenderam a ver a natureza como testemunho da grandeza e bondade de Deus, como digna de ser valorizada e estudada racionalmente. Aprenderam também a reconhecer no homem qualidades superiores: a razão, a iniciativa, a capacidade de ação sobre a natureza e a história, o poder de influencia na construção de seu próprio destino. Esta visão de mundo otimista, assimilada de grandes clássicos da Antiguidade greco-romana, foi o germe do antropocentrismo, que viria a caracterizar o Renascimento.
A mentalidade humanista impregnou a arte e a literatura de novos valores e formas de expressão, preparando o terreno para a virada estética revolucionária do Classicismo renascentista.
O marco inicial do humanismo português se deu com a nomeação de Fernão Lopes para o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo, ou sua promoção à cronista-mor do reino, em 1434.

Luiz de Camões

Classicismo é o nome da escola artística do Renascimento. Suas idéias e realizações são, principalmente, frutos da assimilação da cultura greco-romana, decorrente dos estudos empreendidos pelo Humanismo. Iniciado na Itália, no final do século XV, o Classicismo difundiu-se pela Europa, ao longo do século XVI.
Renascimento é o nome que se dá às transformações culturais revolucionarias de um época trepidante, a da passagem da Idade Média para a Idade Moderna.
Após sete séculos de duração, o sistema político, econômico e social do feudalismo² entrou em colapso. O poder descentralizado do feudalismo deu lugar a um poder concentrado nas mãos dos reis. Com a queda do feudalismo, consequentemente a sociedade passou de uma economia agrária de subsistência para se produzir pensando em excedentes, para a comercialização no mercado que acabara de surgir com o renascimento das cidades e volta das moedas, com isso a economia se tornou dinâmica com as grandes navegações ultra-marinas que buscava mercadorias no Oriente.
O sistema de estamentos que estratificava rigidamente a sociedade feudal* começou a desagregar-se e a ser substituído por uma estrutura flexível e móvel, a da sociedade de classes, que viria a se realizar plenamente após a Revolução Francesa.
A essas transformações históricas devem ser somadas aquelas que abalaram a Igreja de Roma. Em 1517, Martinho Lutero entrou em atrito com a Igreja, que desencadeou a Reforma, e consequentemente a contra-reforma. Para aumentar a crise da Igreja, o renascimento da cultura clássica e o surgimento da ciência moderna foram golpes fatais para a filosofia escolástica e o teocentrismo.
Segundo a escolástica, o papel da filosofia não seria o de pesquisa da verdade, uma vez que esta teria sido revelada por Deus e estaria contida no livro sagrado; a filosofia caberia a tarefa de comentar a revelação divina, para esclarecê-la.
O Renascimento, ao contrário, estimulou a curiosidade intelectual, abrindo caminho para investigação conflitantes com a filosofia escolástica, uma vês que adotava a liberdade de pensamento como critério, e se dispunha a examinar as questões se curva-se perante os dogmas da igreja.
Influenciados pelo pensamento do Humanismo, estudiosos renascentistas voltaram suas atenções para a natureza. A orientação de suas investigações era dada pela observância dos fenômenos físicos e a analise racional dos fatos observados. Os fundadores da ciência moderna valorizavam o empirismo, submetendo à teoria racional a prova experimental, isto é, o conhecimento teórico deve ser confrontado com a experiência.
Assim como a ciência, a arte do Renascimento voltou-se decididamente para a natureza. Entendia-se que a obra de arte deveria imitar a natureza. Os renascentistas encontraram em Aristóteles esse conceito, que definia a arte como mimese (imitação da natureza, realidade e da vida).
O Classicismo do Renascimento é o culto e a prática dos valores artísticos presentes nos autores da antiguidade greco-romana, considerados de classe (de alta qualidade), daí o nome do movimento.
Os Clássicos do Renascimento estudaram e imitaram os clássicos da Antiguidade, voltando a pratica de formas e gêneros literários antigos e assimilaram também a idéia grega de que arte é a expressão de Beleza.
Serenidade, sobriedade e racionalismo são três características do Classicismo, também decorrentes da sabedoria grega, que recomendava: nada em excesso. A razão deve predominar sobre a emoção.
A forma clássica aspira ao equilíbrio e a harmonia da composição; está atenta ao senso de proporção; trabalha a linguagem com clareza e concisão; enfim, busca o rigor e a perfeição formal, obedecendo aos tratados de arte poética que consagravam modelos e regras a seguir.
O ideal de perfeição indica mais uma importante característica clássica: o universalismo. A palavra deriva do universo, que significa totalidade. O universalismo na arte se observa quando o geral supera o particular e as partes estão subordinadas ao todo.
Na literatura clássica, o universalismo se confunde com o idealismo, de inspiração platônica. Segundo Platão, as coisas do mundo sensível são efêmeras imagens imperfeitas das formas ideais, perfeitas, que vivem eternamente num mundo superior ao nosso, o mundo inteligível. Assim, o artista clássico valoriza os conceitos gerais, as idéias, que comumente se expressam em palavras iniciadas por letras maiúsculas sem necessidade gramatical (beleza, amor, real e etc.).
O Renascimento e o Classicismo revitalizaram a herança greco-romana, combinando com o legado do cristianismo³, de maneira a dar a este novos significados e perspectivas. Na pratica literária, a mescla de motivos pagãos e motivos cristãos é chamada fusionismo.
É certo afirmar que as tendências literárias se conflitam – não podemos determinar períodos exatos para cada obra da literatura – devido não se saber ao certo quando termina ou começa um processo histórico, pois um novo contexto histórico-social funciona como um sinal de novidades, sem, entretanto determinar a morte do padrão velho da estética literária. Mas vale ressaltar que, em cada momento histórico, há uma predominância de um padrão a ser seguido, caracterizado pelas transformações sócio-econômicas e culturais de cada época.
No Renascimento essas transformações influenciaram drasticamente no modo do homem compreender o mundo, que até esse momento limitava-se à extensão do feudo. O período das grandes navegações, aliado ao surgimento da imprensa ampliou os limites físicos do mundo e também os horizontes intelectuais do homem. Como conseqüência, o Teocentrismo começa a perder, gradativamente, espaço para o Antropocentrismo, que atinge seu ápice no Renascimento.
Como não poderia deixar de ser, a arte produzida nesse período também passa por transformações consideráveis, pois a vida religiosa, tema dos artistas até aquele momento, é substituída pelas emoções e pelo comportamento humano.
Nesse momento, as mudanças caracterizam-se com a revalorização da Antigüidade greco-romana e a conseqüente imitação de sua literatura, aparecem novamente os poemas épicos, que tomam como modelo as grandes epopéias dos gregos e romanos.

3. Construção da personagem Inês: características físicas e psicológicas.

D. Inês de Castro era familiar de poderosos nobres que ameaçavam a independência de Portugal. O seu relacionamento amoroso com o príncipe herdeiro fazia perigar o reino, tanto mais que Inês e Pedro tinham filhos que poderiam ameaçar a subida ao trono do legítimo herdeiro, D. Fernando, filho de D. Constança. Os conselheiros do rei vão insistir na necessidade de sacrificar D. Inês, exigindo a sua morte com base em argumentos políticos. É impressionante a súplica de D. Inês perante D. Afonso IV, tentando demovê-lo dos seus mortíferos intuitos, e, apresentando como principal argumento os seus filhos, netos do rei, que ficariam órfãos e desamparados:


A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
(canto III, est. 127, vv. 5-8).


Luís de Camões impregnou este seu episódio de um maravilhoso lirismo, personificando a própria natureza, que se compadece da morte de uma donzela tão bela.
Na época Inês era considerada uma mulher manipuladora que utilizava o seu poder junto do príncipe, em benefício de interesses alheios à coroa portuguesa. Só posteriormente, quando desapareceram todas as pessoas que poderiam testemunhar o seu caráter, é que se procedeu à transformação da sua imagem.
Embora fisicamente debilitada e sem forças, Inês de Castro, tinha um caráter forte e impregnante, o que a fez lutar pela sua vida até o último suspiro. Suas palavras eram mais fortes que as suas atitudes físicas, embora estas palavras não a fez conseguir livrar-se da ira do rei e seus súditos.


4. A contextualização histórica da crônica e da epopéia camoniana.

Fernão Lopes (crônica)

Fernão Lopes viveu num momento de intensa crise política. Encerrada a tentativa de invasão castelhana na Revolução de Avis, nenhum grupo detinha autoridade incontestável, enquanto a aristocracia entrava num processo de rearranjo hierárquico, uma vez que parte da antiga nobreza perdera prestígio ao apoiar a invasão estrangeira, o chamado terceiro Estado reunia-se nos pequenos conselhos rurais, urbanos (especialmente Lisboa e Porto), organizações de comércio e ofício. Assim, surgiu um sistema social disperso, cujas constantes lutas locais limitavam uma nova ação que envolvesse todo o território. Diante de tais condições Lopes fora designado para croniciar os feitos da nova dinastia, entretanto, somente o repertório formal e cronológico sob os quais, até então, se estabelecia o gênero crônica, não poderiam dimensionar o processo de abalo das tradicionais bases de poder desarticuladas no movimento ‘revolucionário’, pois, a revolta assentando-se no questionamento da ordem política colocava em suspeição as formas discursivas que constituíam a estrutura de poder senhorial. Lopes tentou racionalizar uma época instável, abstendo-se o quanto pôde do texto laudatório na busca pela isenção histórica, passível de uma verdade capaz de recontar com “çertidom” os acontecimentos. O cronista, apropriando-se, segundo Luís de Souza Rebelo, de um legado discursivo e cultural existente, envolveu-o numa nova trama, explicativa de um outro contexto que deslocava seu sentido original. Fernão Lopes trabalhou nesta margem “de integração do que é novo dentro das velhas estruturas mentais”.
A percepção do caráter problemático do estabelecimento do passado é o ponto de partida motivador da reflexão de Fernão Lopes. Essa percepção é paralela ao enfraquecimento das formas tradicionais de autoridade social e intelectual produzidas pelos acontecimentos da Revolução de Avis. Na ausência de um centro legitimador do discurso, o que aparece é a pluralidade de versões sobre os eventos. No enfrentamento dessa crise de fundamentação, Lopes, enquanto autor, assume a posição de um observador de segunda ordem. Toma distâncias das diferentes histórias disponíveis, tornando-as simples versões ou partes da verdade, requerendo a ação de um sujeito metodologicamente aparatado para recompor a unidade e coerência que devem caracterizar a “nua verdade”. A verdade que no vivido dos fatos, na ação histórica, parece ter sido perdida ou incapaz de ser percebida integralmente pelos próprios agentes.
Esse processo de subjetivação, ou seja, de criação de um autor/sujeito/competência capaz de produzir verdade resolve a percepção da multiplicidade dos relatos e, ao mesmo tempo, serve como esfera onde a ‘naturalidade’ do mundo pode ser recuperada enquanto verdade para todos. Ou seja, se o ser português é condição necessária para saber a verdade da ‘revolução’, essa verdade correria o risco de permanecer um conhecimento limitado àqueles que dela pudessem ter uma experiência direta. Ao estabelecer a voz autoral em torno de procedimentos formais previamente definidos, Lopes pode reivindicar novamente um tipo de integridade para um relato realístico, uma verdade sem fronteiras e território, mesmo que assentada na pré-compreensão do caráter sempre condicionado da história humana.

Luís de Camões (epopéia)

Luis de Camões viveu num momento de crise, como soldado participou de combates em Ceuta, na África, perdendo o olho direito. De volta a Portugal, freqüentou a corte.
Em 1552, foi preso por ferir um cortesão do rei, numa briga de rua. No ao seguinte, é solto é parte para Índia, a serviço de D. João III. Lá, participou de várias expedições militares, vivendo anos de pobreza e dificuldades. A benevolência de um vice-rei levou-o a Macau, na China, para exerce o compensador cargo de “provedor dos bens de defuntos e ausentes”. Má administração teria levado o poeta a perder o cargo e regressar prisioneiro para a Índia. O navio que o levava naufragou junto a foz do rio Mecom. Camões salvou-se a nado. Diz a tradição que nesse naufrágio teria parecido Dinamite, a chinesa amada de Camões, imortalizada em seus versos líricos.
Entre 1557 e 1569 esteve em Moçambique, “tão pobre que vivia de amigos” como disse Diogo Couto, que o encontrou na África. Nessa ocasião, Os lusíadas já estavam redigidos. Camões tinha pronto, também, o manuscrito original de um livro de poemas, chamado Parnaso, que lhe foi roubado e desapareceu.
Em 1570, de volta a Portugal, Camões luta para imprimir sua epopéia lusitana. Em 1572, após dois anos de demandas pelo alvará real e a licença da Inquisição, consegue, finalmente, ver publicada sua obra-prima: Os Lusíadas.
O jovem rei D. Sebastião, pelos serviços prestados, concede ao poeta uma modesta pensão, que não foi paga regularmente.
Os últimos anos foram de penúria. Doente e marginalizado, Camões morreu em 1580, sendo enterrado em cova rasa, no convento de Santa Ana, local hoje chamado de Campo de Santana. De fato, jamais se encontrou o tumulo de Camões, mas afirma-se que, anos após o falecimento do poeta, D. Gonçalo Coutinho mandara instalar uma lapide identificando o local. Esse marco se perdeu, com o terremoto que assolou Lisboa, no século XVIII. Hoje, há um tumulo de honra a Camões, situado no mosteiro dos Jerônimos, ao lado do de Vasco da Gama, o herói imortalizado pelo poeta em Os lusíadas.

5. A influência da crônica lopeana na epopéia Os lusíadas.

Para narrar a expedição de Vasco da Gama ao Oriente, datada de finais do séc. XV, Luís de Camões recorreu, sobretudo, à História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda, ao Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama, atribuído a Álvaro Velho, e à Ásia, de João de Barros. Porém nesta breve analise irei me deter mais especificamente nas inferências que as crônicas de Fernão Lopes obtiveram sobre o poema épico Os lusíadas.
Como já havia dito anteriormente, Camões utilizou alguns episódios das crônicas lopeanas, entre esses, encontra-se o episódio de Inês de Castro, em que o poeta ao transcrever as cenas, fez algumas adaptações, expondo assim, seu ponto de vista a respeito desse fato histórico.
A diferença que fica explicita veementemente nas cenas d’Os lusíadas se comparada a crônica de Fernão Lopes é a questão da presença de filhos de Inês de Castro no poema épico de Camões. Na narração lopeana em nenhum momento ele cita que Inês tinha filhos, mas, quando observamos n’Os lusíadas a cena em que Inês de Castro intercede pelos filhos ao rei D. Afonso IV isto fica bem nítido. Observe estas estrofes d’Os lusíadas de Camões:

E depois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assim dizia: [...]

A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

(canto III, est. 125 vv. 5-8/ 127, vv. 5-8).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

RODRIGUES, Medina; CASTRO, Dácio; ACHCAR; Chico; RAMOS, Paula. Literatura Portuguesa: 2ª. ed. São Paulo, Ática, 2006. 37 p.

ARAUJO, Valdei Lopes. A Emergência do Discurso Histórico na Crônica de Fernão Lopes. Revista de História e Estudos Culturais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Minas Gerais, v. 3, n. 2, p. 21-31, mar. 2006.

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia: traço comum a Os Lusíadas e a O bosque harmonioso, de Augusto Abelaira. Boletim do Centro de Estudos Portugueses. n. 12. Belo Horizonte,
Fale/UFMG, jul.1986/dez.1988. p. 150-156.

MACEDO, Helder. A poética da verdade d’Os Lusíadas. In: GIL, Fernando; MACEDO, Helder. Viagens do olhar. Lisboa: Campo das Letras, 1998. p. 121-141.

ABDALA JÚNIOR, Benjamin, PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1982.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões. In: ______.Lições de cultura e literatura portuguesas : séculos XV, XVI e XV. Coimbra: Coimbra Editora,1959.v.1

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 1979.

SARAIVA, Antonio José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17.ed. Porto: Porto Editora, 1996.

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