sexta-feira, 18 de julho de 2008

FRONTEIRA ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO NA PRIMEIRA PARTE DA OBRA O CEMITÉRIO DOS VIVOS DE LIMA BARRETO


Cláudio Henrique de Souza Pires**

Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.
(Lima Barreto)


Neste artigo abordarei a influencia da biografia de Lima Barreto em suas obras, mas especificamente no volume O Cemitério dos Vivos, na primeira parte O Diário do Hospício. Serão tratados alguns temas de relevância tais como: os limites entre a biografia e a ficção e a biografia como concepção literária de acordo com os estudos de teoria da literatura. A metodologia adotada neste artigo foi desenvolvida a partir de reflexões sobre a conduta psico-social do escritor, e suas atitudes durante o período em que passou no hospício, além de comparar com outras obras anteriores ao Diário do Hospício e analisar quais as semelhanças e diferenças encontradas nessas obras e o Cemitério dos Vivos, e assim descobrir qual é o limite que existe entre a realidade e a ficção literária no texto de Lima Barreto. Veremos mais detalhadamente a fusão biográfico-literária; o Diário – realidade ou ficção; projeto ficcional ou realidade em foco; configuração da narrativa – a intenção do autor; a loucura – motivação para a escrita; as personagens – o universo da ficção limana. Em suma, o que se fez ou se faz do autobiográfico e do ficcionalismo na obra de Lima Barreto motiva o desenvolvimento deste artigo.

Palavras chaves: Literatura brasileira, pré-modernismo, Lima Barreto, realidade ou ficção.

A questão da fusão biográfico-literária na obra de Lima Barreto
O Cemitério dos vivos é uma produção literária que representa a ousadia de um escritor que se punha além do seu tempo para assim refletir dentro do aspecto escrituristico as mazelas sociais da realidade brasileira do inicio do século XX. Através de uma capa ficcional, este escritor conseguiu transpor a censura contemporânea e mostrar uma outra face do submundo do Brasil, mergulhando profundamente no intimo do ser humano, por essa razão, foi considerado por muitos críticos um escritor da “alma humana”.
N’O Diário do Hospício, o escritor ocupa-se mais dos outros que de si. Encontramos, em suas paginas, expressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as alusões constantes ao problema da cor ou a adoração nacional pelos doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha.
Lima Barreto não combate em seu próprio benefício; os preconceitos e as injustiças despertam a sua ira pelo que são, e não pelo fato de atingirem a ele. Longe de ser um ressentido, é ele um lutador, um escritor consciente das desigualdades, das degradações de natureza ética e estética, um ser humano cheio de fervor, sonhando um mundo menos estúpido e clamando até a morte sem meios termos, sem frieza, assumindo posições claras a sua verdade que defendia.
Pouco afortunado na sua vida familiar, - a morte prematura de sua mãe, e a loucura de seu pai devido a vícios -, nada conhece Lima Barreto das riquezas e honrarias legada aos abastados de sua época, devido a seu insucesso na vida acadêmica e a sua falta de sorte como escritor, - com quatro romances publicados sem o devido reconhecimento do publico -, dedica-se a vida boemia e entrega-se ao vicio, até chegar um momento que acaba perdendo a sanidade mental e começa a andar igual a um andarilho pelas ruas do subúrbio carioca, não tendo mais solução é internado como indigente no Hospício, sem que se registre em seu favor alguma solidariedade, sendo também rara a presença de amigos. Ele foi internado duas vezes, a primeira por ordem policial e a segunda por decisão de seu irmão. O hospício naquela época era uma arma nas mãos dos que tinham poder, dos que podiam decidir quem era, ou não, apto a viver em sociedade. Tinha função muito útil para a realização do “progresso” da humanidade por que mantinha a ordem de dominação para afastar aqueles que não se adaptam à ordem vigente presente nas sociedades de classes.
Dessa forma, foi natural que algo de uma vida tão cercada de pressões refletisse na sua obra e isto ocorre em verdade. Observe seu depoimento em um trecho da sua narrativa:

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro. ¹

Sendo assim, Afonso Henriques de Lima Barreto, segredado e envolvendo, no seu olhar desperto avaliador e sensível a mudanças, ante a janela aberta do Hospício Nacional de Alienados, as montanhas, o mar e o casario sob a manhã nevoenta de janeiro, enquanto medita outro romance que não chegará a concluir, vive nesses dias, tão preso ao personagem-narrador, que se confunde com ele em seus apontamentos sobre o Hospício de Alienados, é um pouco a imagem de seu próprio destino e da sua atitude em face do mundo. Lima Barreto realizava a transposição direta da realidade para a ficção. É possível reconhecer nos seus textos ficcionais e principalmente n’O Diário do Hospício marcas da escrita memorialista. Porem para reconhecermos isto no texto O Diário do Hospício de Barreto é necessário fazermos uma leitura ambígua da narrativa, na leitura ambígua – defeitos passam a ser virtudes e vice-versa.
Escolhi trabalhar com essa temática na obra limana, primeiramente, devido à dificuldade de aceitação desse texto como sendo ficcional, por parte da maioria dos leitores despercebidos, que normalmente ver este texto como confissão do escritor, e depois porque percebi que essa é uma temática pouco alargada no meio acadêmico.


O Diário – realidade ou ficção
O Diário do Hospício pertence ao gênero narrativo e ao subgênero de memórias, por que é uma história situada na figura do autor ou a partir da sua subjetividade. Mesmo sendo um diário, cronologicamente mais próximo dos acontecimentos narrados, é necessário fazer uso da memória para que o texto tome a devida forma.
A arte literária deriva de uma atividade prática do homem de criar outras realidades por meio de palavras. A criação literária é coisa diferente da realidade, mas também significa aparentemente o contrário, ou seja, que a realidade é o material da criação literária. Sendo assim, o escritor parte da sua percepção de realidade para chegar à ficção. Essa percepção pode ocorrer de forma direta e, ou indireta. A direta é quando o escritor observa o mundo, os outros homens, as idéias, concepções, produtos humanos ou observa a sua própria natureza. A forma indireta quando o escritor cria sua obra a partir de outra obra ou toma conhecimento dos fatos por meio da informação de terceiros.
Basicamente foi isso o que ocorreu com Lima Barreto ao compor a sua obra O Diário do Hospício, ele partiu do real para a ficção, e a situação real que ele tinha na percepção direta foi suprida na indireta pela sua imaginação. A imaginação é então um dos três processos principais para a apreensão da realidade. Por ser criado a partir de processos de percepção da realidade, O Diário do Hospício será sempre uma obra imaginada, assumindo sempre uma nova forma, ou seja, a forma ficcional. Observe que Lima em sua narrativa aponta outras obras literárias que correspondia à situação narrada naquele momento:

Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria. ²

O romance, dentre as obras literárias é a que melhor tenciona a relação realidade e ficção. A personagem e o narrador são os mediadores da representação da realidade; são eles, após trabalho do autor, que vão dar ao leitor um relato completo e autêntico da experiência humana. O comportamento deles autentica a verdade proposta pelo enredo.
E nada seduz mais o leitor que o romance de memórias. Primeiro pela narrativa em primeira pessoa, o que confere a experiência relatada ao próprio narrador, funciona como o “eu” das memórias autenticas. O narrador de memórias parte de um ponto determinado e a partir dele evoca a totalidade da sua vida passada. Em alguns casos, para entender o próprio passado, em outros, para explicar a si mesmo o momento presente. Ou seja, o eu que narra não é mais o eu de quem se fala. Provavelmente por isso o autor d’O Diário do Hospício deve ter preferido escolher este tipo de composição textual (romance de memórias).


Projeto ficcional ou realidade em foco.
O romance O cemitério dos vivos parte das anotações realizadas por Lima Barreto durante a sua segunda estada no Hospício Nacional de Alienados, no período de 24 de dezembro de 1919 a 04 de fevereiro de 1920. É o próprio autor, ainda interno do hospício, que dá notícia do seu novo plano de trabalho ao repórter do jornal A Folha: “Tenho coligido observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna nos hospitais de loucos. Leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis”. Essa entrevista está relatada no romance.
Quando questionado pelo repórter se já possuía uma data para o lançamento do romance, Lima Barreto, responde: “Não sei. Agora só falta escrever, meter em formas as observações aqui reunidas. Esse trabalho pretendo começar logo que saia daqui, porque aqui não tenho as comodidades que são de se desejar para a feitura de uma obra dessa natureza”.
Então você percebe que embora o texto parta da realidade de seu contexto vivido, Lima Barreto pretende criar sim, um projeto ficcional, pois, ele apresenta esta proposta no próprio romance. Não é de fácil compreensão essa mesclagem, a fronteira entre a realidade vivida e o texto ficcional é quase invisível, uma mente despreparada tende a pensar que tudo é uma coisa só, mais não é. O texto na sua integra podemos absolutamente afirmar que trata-se de um projeto ficcional.


A intenção do autor – literalidade ou literariedade?
O romance O cemitério dos vivos integra o volume homônimo que abriga também em suas páginas as seções intituladas o Diário do hospício, o inventário da biblioteca do autor – a Coleção Limana –, documentos referentes às internações de Lima Barreto no Hospício Nacional de Alienados e a entrevista concedida pelo autor para o jornal A Folha. Segundo alguns críticos trata-se de um volume de memórias. No entanto como se percebe pela descrição das partes que o compõem estão ali diferentes tipos de composições textuais: uma entrevista, documentos burocráticos, notas pessoais e o texto ficcional em formato não definitivo. Assim, a afirmação de que se trata de um volume de “memórias” acaba por confundir o leitor, sugerindo a leitura de O cemitério dos vivos como um exercício de autobiografia.
A princípio os dados do Diário do Hospício estavam organizados em cinco seções intituladas: O pavilhão e a pinel; Na Calmeil – Os primeiros dias; Minha bebedeira e minha loucura; Alguns doentes e por fim Guardas e enfermeiros.
Ao Diário do hospício são acrescidos cinco capítulos: o VI, em que o narrador trata de outros doentes, o VII em que se percebe maior rigor na narrativa e traços ficcionais como, por exemplo, referências à mulher e ao filho; no VIII descreve a biblioteca, o IX é a reescritura do capítulo anterior e, por fim, o capítulo X que são as notas realizadas no hospício.
Lima Barreto observava e anotava o comportamento dos internos, guardas, enfermeiros, e médicos assim como, do ambiente do hospício, das seções a que foi sendo transferido e das leituras que fazia na biblioteca da instituição. Com seu olhar atento procurava avaliar o que se passava. Escrever para ele, naquele momento, era uma maneira de escapar do silêncio, a escrita simulando a vida, ou uma prática destinada a exercitar a palavra. Essas anotações foram como que uma condição de salvação, de manter a lucidez e não perder a perspectiva crítica.
Os capítulos I ao IX formam um texto à parte dentro da narrativa que se convencionou chamar de Diário do hospício. O material que o compõe desperta especulações, pois não atende as características básicas de um texto que se quer diário: não respeita o calendário e está todo ele organizado em capítulos, em que se desenvolvem as opiniões do narrador em registros de fôlego a respeito da sua entrada no hospício, internos, considerações sobre a loucura. Fatos que contrariam o princípio da fragmentação.
Poder-se-ia supor, então, que se trata de uma autobiografia puramente realista, mas não é possível estabelecer um pacto de leitura com o narrador, pois não há uma identificação dessa voz narrativa. Mas a principio em nenhum momento o narrador se identifica como Afonso Henriques de Lima Barreto, como fez em outra obra sua chamada de Diário Íntimo, onde se pode ler:

Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. ³

Além de não se identificar como Afonso Henriques de Lima Barreto, o narrador do Diário do Hospício altera seu nome. A princípio é o Doutor L, quando conta a seguinte história:

Uma noite, às últimas horas, muito bêbado, pedia V. que me levasse ao bonde, que passava na Rua Sete de Setembro. Esperei no poste, em frente ao canil, o veículo e, de repente, focinhei no chão. V., que já morreu e era muito mais forte do que eu, levantou-me, equilibrou-me e pôs-me de pé. De repente, veio uma rapariga preta, surgida não sei de onde, que perguntou a V. (foi ele que me contou): - A patroa manda perguntar o que tem o doutor L.? V. respondeu: - O doutor L. está um pouco incomodado, devido a ter se excedido um pouco. Não é nada. º

E num segundo momento é Tito Flamínio, personagem da primeira versão de O cemitério dos vivos: “Estava deitado no dormitório que me tinham marcado e ele chegou [o guarda] à porta e perguntou: - Quem é aí Tito Flamínio? – Sou eu, apressei-me”.
Outro detalhe é que o narrador relata que a mãe está em casa. A mãe de Lima Barreto, dona Amália Augusta Barreto, morreu em dezembro de 1887, quando ele tinha seis anos de idade. Menciona um filho doente, embora o autor não tivesse filhos e não haja registro de qualquer tipo de união com uma mulher: são apenas personagens ficcionais citadas no corpo do suposto diário, como transcrito abaixo:

Aborrece-me este hospício; eu sou bem tratado, mas me falta ar, luz, liberdade. Não tenho meus livros a mãos; entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu Deus! Tanto faz, lá ou aqui... Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é a minha casa.
Meu filho ainda não delira; mas a toda hora espero que tenha o primeiro ataque. (....) Minha mulher faz-me falta, e nestas horas eu tenho remorsos como se a tivesse feito morrer. Logo, porém, como vem de mim ou de fora de mim uma voz que me diz: é mentira.


Todos esses detalhes levam a crer que se trata de um texto ficcional, que procura atender as exigências estéticas de Lima Barreto: de autenticidade, de comoção do leitor, de diálogo, que seriam favorecidas pela narrativa em primeira pessoa. A narrativa centrada no sofrimento humano seria um meio de estreitar as diferenças entre os homens. N’O Diário do hospício, que pela estrutura deveria ser chamado de Memórias do hospício, Lima Barreto, volta a valorizar o testemunho, a narrativa introspectiva para trazer ao leitor a experiência da solidão.
O texto do diário desperta a atenção ao primeiro contato. Inicialmente pelo título e num segundo, o mais atrativo ao leitor, pelo conteúdo: o cotidiano no hospício, no melhor estilo “baseado em fatos reais”. O narrador facilmente envolve o leitor, devido às situações narradas e à maneira como o faz: usa de linguagem simples e adequada ao tom confessional do texto.
Possivelmente esse tom verossímil que se apresenta na narrativa limana é um recurso a mais para atrair a atenção dos leitores, que, provavelmente durante o inicio do século XX interessavam-se por narrativas de diários e principalmente tratando-se de um assunto tão polêmico que era um tabu na época, a loucura.

4 de janeiro. Estou no hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos e tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do vestuário que me é hoje indispensável.

Um leitor desatento, provavelmente ficaria confuso ao ler um texto com essa riqueza de gêneros interligados, e talvez até possa pensar que esse texto não tem nada de ficcional.
Outra característica desse narrador é a rapidez com que vai contando os fatos: no primeiro capítulo informa ao seu leitor quando entrou no hospício, como é o tratamento recebido, que esteve internado antes, que não se acredita louco, mas que devido ao álcool e apreensões domésticas e financeiras viera para ali. Faz comentários sobre os médicos, guardas e enfermeiros e sobre a transferência para outra seção. E por fim promete que vai contar a “tragédia manicomial em separado”, mas que no momento vai suspender a narrativa porque se cansa. Cria, entretanto, o gancho para manter o leitor esperando por mais informações:

Paro aqui, pois me canso; mas não posso deixar de consignar a singular mania que tem os doidos, principalmente os de baixa extração, de andarem nus. Na Pinel [seção do hospício em que estava internado], dez por cento assim viviam, num pátio que era uma bolgia do inferno. Por que será?

Indiscutivelmente depois da analise desse fragmento não resta dúvidas quanto à composição literária desse texto, ele apresenta de forma quase imperceptível a maneira como segurar um leitor ao longo de suas narrações.
Através desse recurso utilizado pelo escrito, percebemos que seu objetivo ia mais além do que escrever um simples diário intimo ou querer narrar simples fatos da sua vida no hospício, percebemos que ele tinha uma intenção colossal com a escritura desse diário. Talvez a intenção fosse como nós sabemos, escrever um romance que perpetuasse além dos seus dias. E foi isso que ele fez. Ele procurou através dos fatos vividos por ele em seu cárcere privado, ou, aliais coletivo, criar um texto ficcional que englobasse a sua vida por um todo.


A loucura – motivação para a escrita.
N’O Diário do hospício, a loucura é motivação para um capítulo e passa a ser analisada sob a ótica científica; é mistério e precisa ser pesquisada, no entanto logo depois deixa de ser ciência e passa a ser mistério:

Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. (...) Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele; há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes observações, mas uma explicação da loucura não há.
Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura, não parte da verdadeira causa. O que todos julgam, é que a cousa pior no manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação à outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso
da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.

O processo criativo é um exercício constante de acúmulo e renúncia de dados, idéias, palavras, de tempo. No caso do processo de criação de O Diário do Hospício não foi diferente. Por meio da analise feita verificou-se que Lima Barreto, pelo que se deduz dos manuscritos e anotações dele no hospício, desenvolvia as notas à medida que coletava as “observações interessantíssimas” do hospício. Podemos comprova isto quando lemos no capítulo V o seguinte fragmento:

Ontem matou-se um doente, enforcando-se. Escrevi nas minhas notas: “Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia Tão belo como o de hoje”. Não me animo a dizer: venceste, Galileu; mas, ao morrer, quero com um sol belo, de um belo dia de verão!

Isto faz pensar que o texto do diário foi desenvolvido ainda dentro do hospício, e num primeiro momento até atendeu as expectativas do escritor, mas não a contento de modo que era necessário empreender o romance.
De acordo com o contexto da narrativa de Lima Barreto, o romance foi produzido praticamente após a alta da instituição. Provavelmente 7 de fevereiro de 1920, cinco dias após a saída do hospício. Lima Barreto, em sua busca de formas literárias que melhor pudessem soldar e ligar a humanidade em uma maior reflexão, não deveria estar satisfeito com a narrativa do diário, mais objetivo, e pouco envolvente aos olhos do leitor, a não ser para satisfazer a curiosidade daqueles que gostariam de vivenciar por meio da leitura a experiência interna do hospício. Era necessário erguer o texto a um estágio de maior tensão emocional para que atendesse à sua estética militante, que era de produzir uma literatura de reflexão da realidade, opção que começou a desenvolver em alguns capítulos do diário, mas de modo ameno e insuficiente frente às suas expectativas. Afinal a experiência de internamento fora singular e poderia ir além do desenvolvimento de “observações interessantíssimas” sobre a vida dentro do hospício. Então foi a partir da temática da loucura e com a experiência vivida que intencionalmente começou aflorar a literariedade do Diário, na sua forma propriamente dita.


As personagens – o universo da ficção limana
A arte literária de fato seria uma atividade individual, porém que após a reelaboração deixava de pertencer ao artista e passaria a fazer parte do mundo com o objetivo de diminuir diferenças. Observa-se nessa proposta do autor umas das qualidades do texto ficcional: atingir temas universais quando trata de problemas subjetivos das personagens.
Para Lima Barreto, a arte estava longe de ser apenas entretenimento, deveria promover reflexões sobre a condição humana, e, a partir delas estabelecer união entre os homens, possibilitar a quem lesse seus escritos. Ele procurava evidenciar que uma narrativa centrada no sujeito, e mais precisamente no sofrimento, poderia diminuir o distanciamento e a diferença social.
Lima Barreto estava muito ciente do que fazia, não era um escritor relapso ou em busca de reconhecimento imediato. Sabia do risco que envolvia suas opções, mas optou por partir de um olhar de quem está de fora, à margem, e não é possível negar que é um olhar privilegiado, de quem transitava por sociedades distintas e não se sentia parte de nenhuma delas.
Na obra O cemitério dos vivos, a preocupação com o desenvolvimento das personagens torna-se claro, pois das noventa e sete notas que compõem o capítulo X do diário cerca de dois terços tratam dos tipos humanos que dividem o espaço com o narrador, em sua segunda estada no hospício.
No Diário do Hospício, do capítulo I ao IX foram identificados setenta e um personagens. No capítulo X, da mesma obra, foram estabelecidas as identidades de cinqüenta e nove indivíduos, entre internos, funcionários administrativos, amigos e familiares.
Gostaria de salientar que a descrição das personagens na obra limana, serve, pura e tão somente para indicar o grau de ficcionalidade do texto, embora sejam seres reais em qualquer sociedade e em qualquer época, o modo como o escritor retrata cada cena, cada situação vivida, nos dá a entender que existe uma fronteira que ele ultrapassa entre a realidade e a ficcionalidade. Observe atentamente a esse detalha no trecho abaixo:

Meu vizinho de dormitório é um rapaz cuja loucura reagiu sobre o seu aparelho vocal a ponto dele mal falar e com esforço. Olha-me estupidamente, e com um olhar parado e de um único brilho, e tem a mania de incapacidade de ingerir qualquer alimento. Tudo se tem experimentado: leite, frutas, até um irrigador; mas é em vão. Ele não ingere nada e, se ingere à força, logo vomita, debilita-se e dá em suar as catadupas.
Esperando a sua morte próxima, a família levou-o para casa. Vai mudar de cemitério — coitado! Para esse, não houve um intervalo entre os dois.


As características de personalidade dos personagens, assim como as descrições das seções do hospício servem ao processo de criação literária, porém, o que ocorre é que as características de personalidade originais são acrescidas de outras que vêm decorrentes das leituras de Lima Barreto ou que são decorrentes da sua imaginação. No entanto, qualquer que seja a opção, o autor tinha em mente ligar a humanidade em uma maior e para que pudesse atender a esse objetivo, manteve-se como um equilibrista entre a realidade e a ficção.


Considerações finais
Lima Barreto estava preso à vida presente, aos homens presentes; eram eles a sua matéria para falar a nós os homens futuros. Fez de suas páginas de ficção memória do seu tempo presente. Tal atitude, taxada de personalismo, despertou na crítica um olhar ambíguo sobre seus escritos, pois ora eram defeitos ora virtude. Se eram defeito ou virtude a Lima Barreto pouco importava, pois a literatura para ele nunca fora entretenimento silencioso.
Fica claro, portanto, que o registro memorialista, refundido ficcionalmente, longe de ser traço de espontaneidade ou imperícia, constitui-se em opção estética manifesta, em busca de efeitos expressivos particulares bem como de favorecer a comunicação entre os leitores.
Para a sua estética engajada, militante, os gêneros pouco interessavam, pois como ele mesmo escreveu, queria comunicar e estreitar o relacionamento entre os homens. Dessa forma percebemos a grandiosidade de sua obra, que ainda hoje encanta muitos leitores pela verossimilhança e fusão biográfico-literária apresentada e a metalinguagem em explicar sobre a sua estética dentro da sua obra.






























Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed. São Paulo: Cultrix,
2001.

BOSI, Alfredo. O romance social: Lima Barreto. In: História concisa da literatura
brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 316-324.

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

Nenhum comentário: