sexta-feira, 18 de julho de 2008

Conceito de substantivo na ótica do gramático Evanildo Bechara



Substantivo é a classe de lexema que se caracteriza por significar o que convencionalmente chamamos de objetos substantivos, isto é, em primeiro lugar, substancias (homem, casa, livro) e, em segundo lugar, quaisquer outros objetos mentalmente aprendidos como substancias, quais sejam qualidades (bondade, brancura), estados (saúde, doença), processos (chegada, entrega, aceitação).

Estrutura interna do substantivo – a estrutura interna ou constitucional do substantivo (isto é, sua morfologia) consiste, nas línguas flexivas como o português, em geral, na combinação de um signo lexical expresso pelo radical com signos morfológicos expressos pelo radical com signos morfológicos expressos por desinências e alternâncias, ambos destituídos de existência própria fora dessa combinação. Entre as desinências que, na flexão, se combinam com o substantivo está a marca de número e, nas línguas que a possuem, a marca de caso (nominativo, acusativo, etc., como se dá, por exemplo, no grego, no latim, no alemão). O substantivo, fora da flexão, pode ser dotado da marca de gênero: menino/menina, gato/gata.

Segundo as informações retiradas da Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, observa-se veementemente uma avaliação descritiva da língua, especialmente em relação à classe de palavras denominada de substantivos.
Bechara chama-nos a atenção para o fato da abstração e concretização dos substantivos, que geralmente vem sendo ensinada equivocadamente nas séries iniciais do ensino fundamental, e por que não dizer até mesmo, nas séries avançadas e no ensino médio, de acordo com alguns professores dessas series, os substantivos concretos são aqueles sensíveis, que se pode tocar ou ver, e os abstratos são todos os seres imaginários. Bechara nos alerta para o fato de que os substantivos concretos são o que tem existência independente e os abstratos são os que dependem de um ser ou objeto para existir.
Outro caso notável que observamos na gramática de Bechara é a questão dos substantivos próprios e comuns, mais um fator que vem sendo ensinado erroneamente nas escolas de educação básica no país, quando alguns professores atribuem nomes comum como sendo próprio, simplesmente por não haver mais de um em nosso contexto social (papa, sol, lua, domingo), Bechara diz que se esses nomes forem escritos com maiúscula, deve-se o fato a pura convenção ortográfica, e não porque são próprios.
Ainda no estudo dos substantivos comuns e próprios, observamos que o autor destaca também a passagem de nomes próprios a comuns. Isso ocorre quando pegamos qualidades ou defeitos de um ser individual para transferir a um grupo mais numeroso de seres. Como exemplo temos na personagem histórica do discípulo Judas, não só o nome de um dos apóstolos, aquele que traiu Jesus, porém um nome que virou sinônimo de traidor ou amigo falso, em expressões do tipo: Fulano é um judas. Há ainda os nomes de pessoas ou lugares onde se fazem ou se fabricam certos produtos que passam a ser nomes próprios: sanduíche (do conde Sandwich), champanha (da região francesa Champagne).
Bechara destaca também as subclasses dos substantivos, entre essas estão às classes contáveis e não-contáveis, segundo ele a categorias dos não-contáveis pertence o substantivo coletivo, que, na forma de singular, faz referencia a uma coleção ou conjunto de objetos. Entre os coletivos há os universais, que não são contáveis e por isso só se pluralizam nas condições especiais à classe, e há também os particulares que se contam e podem ser pluralizados.
Mais um fato interessante é que ele destaca a diferença entre os coletivos e os nomes de grupo. São nomes de grupos os conjuntos de objetos contáveis, que se aplicam habitualmente ou uma espécie definida (cardume, alcatéia, enxame) ou total ou parcialmente indefinida (conjunto, grupo, bando).
Em relação à flexão de número do substantivo, estes podem pertencer ao singular ou plural, quando o singular designa vários objetos de uma mesma classe considerados num todo, chamamos de coletivo: professorado, alunado, cardume, etc.
Segundo Bechara, em português, o significado gramatical plural é obtido com a presença da desinência pluralizadora – s, o singular se caracteriza pela ausência desta desinência. A flexão de número, em português, se estende ao adjetivo e ao verbo.
Se tratando da flexão de gênero do substantivo, o que diferencia Bechara de outros gramáticos é o fato dele ressaltar a inconsistência do gênero gramatical, segundo ele a distinção do gênero nos substantivos não tem fundamento racional, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma. Não tem lógica lápis e papel serem masculinos enquanto caneta e folha serem femininos.
A incoerência do gênero gramatical tornar-se evidente quando se confronta a classificação de gênero em duas ou mais línguas, e até no âmbito de uma mesma língua quando analisada diacronicamente. Mesmo nos seres animados, as formas do gênero não determinam o sexo, como ocorre com os substantivos chamados epicenos, comuns de dois, e sobrecomuns. Outro fato relevante que Bechara inclui em sua gramática em relação ao gênero é a questão da mudança de gênero, derivadas das aproximações semânticas entre as palavras, da influencia da terminação, do contexto léxico em que a palavra funciona, e do próprio falante, ele ainda cita alguns exemplos na variedade temporal do português de palavras que passaram a ter gêneros diferentes: já foram femininos, fim, planeta, cometa, mapa, tigre fantasma e etc., e já foram masculinos os substantivos: arvore tribo, catástrofe, hipérbole, linguagem entre outros.
O sistema gramatical teve que se adaptar as convenções sociais e a presença casa vez mais acentuada da mulher no mercado de trabalho criando usos particulares de gêneros femininos que nem sempre foi adotado na língua portuguesa padrão.
Quanto ao grau, os substantivos apresentam-se com a sua significação aumentada ou diminuída, auxiliadas por sufixos derivacionais. O aspecto que mais destaca Bechara de outros autores de gramáticas, é que ele ressalta a confusão que a NGB fez com relação à flexão e a derivação, estabelecendo os dois graus de significação dos substantivos: aumentativo e diminutivo. Ele diz que a derivação gradativa do substantivo se realiza por dois processos, numa prova evidente de que estamos diante de um processo de derivação, e não de flexão. Os processos são: sintético – consiste no acréscimo de um final especial chamado sufixo derivacional aumentativo ou diminutivo – e o analítico – que é o emprego de uma palavra de aumento ou diminuição junto ao substantivo.
Outro aspecto que ele ressalta em relação ao “grau” é que fora da idéia de tamanho, as formas aumentativas e diminutivas podem traduzir o nosso desprezo, a nossa critica, o nosso pouco caso para certos objetos e pessoas, influenciado pelo contexto e auxiliado por uma entoação especial (critica admirativa, lamentativa, etc.).
Além de tudo que já foi analisado até agora, Bechara ainda comenta sobre a função sintática que os substantivos exercem na língua portuguesa. Ele diz que os substantivos funcionam especificamente como o sujeito (ou seu núcleo) da oração e, no domínio da constituição do predicado, adjunto adnominal e adjunto adverbial. Em geral, a função de sujeito e de objeto direto o substantivo ganha a concorrência de qualquer outro elemento.
Para encerrar Bechara fecha o estudo dos substantivos com “chaves de ouro” discorrendo sobre a influencia dos nomes próprios estrangeiros na língua portuguesa. Ele menciona os antropônimos e os topônimos, acrescentando algo interessante: nos antropônimos, a tradição literária, prefere quando possível, aportuguesar o prenome, deixado o sobrenome intacto (Renato Descartes, Antônio Meillet e etc.).
Vimos através desta curta analise que o autor busca de maneira cientifica, estudar os fenômenos ocorrentes na língua, destacando as coerências e incoerências relacionadas às classes de palavras, mas especialmente os substantivos, assim ele deixa que o leitor tenha uma visão crítica a respeito de sua própria língua e dos modelos que a convencionaram.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BECHARA, Evanildo – Moderna Gramática Portuguesa – 37ª. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. 112 p.

EMPRÉSTIMOS LINGUÍSTICOS


Cláudio Henrique de Souza Pires - UESB/Jequié



CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Dentre os estudos do léxico da língua portuguesa, o que mais se destaca, por sua perspicácia e polêmica por parte da mídia e os demais meios de comunicação é a questão dos empréstimos lingüísticos, mas especificamente os estrangeirismos oriundos da língua inglesa, americana ou anglo-saxônica.
Há muitos esforços políticos para banir os estrangeirismos da língua portuguesa no Brasil com o intuito de conservar a sua “pureza”, estes esforços são em sua maioria originados por pessoas ou instituições que não se aprofundaram nos estudos das ciências da linguagem. Os que defendem a extinção dos estrangeirismos no nosso idioma têm uma preocupação inútil e sem fundamentos teóricos, para embasar essa prática. Embora tenham uma boa intenção e serem sinceros patriotas, porém, estão sinceramente equivocados em relação ao que defendem sobre a nossa língua. Eles não têm o conhecimento diacrônico e muito menos sincrônico da língua portuguesa, somente possuem uma simples visão gramatiqueira do que é a linguagem. Imbuídos apenas em preconceitos lingüísticos, querem, assim como tentam criar um hegemonia lingüista dentro do próprio idioma, excluindo os diversos dialetos falados no Brasil, eles querem também criar uma exclusão de todas as palavras que são de origem estrangeira com base em argumentos falhos e sem coerência. Ignorando a nossa diversidade lingüística os que defendem a extinção do estrangeirismo adotam essa tese:

“nossa identidade nacional reside justamente no fato de termos um território imenso com uma só língua, esta plenamente compreensível por todos os brasileiros de qualquer rincão, independentemente do nível de instrução e das peculiaridades regionais da fala e da escrita”.

A posição política que eles defendem busca justificar o controle social pelo Estado da produção lingüística dos cidadãos. Poderia ser vista como legitima e defensável esta tese somente se fosse entendida como uma posição que busca defender a definição daquilo que conta como a língua do poder a condução das comunidades e da própria sociedade brasileira.
É interessante observar que esse fenômeno não ocorre somente no Brasil, mas em também em outros paises, como nos Estados Unidos, onde os conservadores gramaticais recorrem ao mesmo tipo de ideário, alegando haver ameaça ao inglês americano e com base nessa alegação, propõem ao congresso americano uma legislação de “proteção e defesa” do inglês, coibindo o uso de outras línguas, principalmente o espanhol.
Diante dessas lutas contra a “liberdade de expressão lingüística” podemos observar que sempre os que estão no controle do poder prevalecem e assim beneficiam a classe mais privilegiada da sociedade.
Nós estudantes de Letras, devemos estar conscientes de nosso papel diante dessa luta, devemos erguer a bandeira para defendermos diferenças lingüistas e assim construir um país mais justo e sem preconceitos.
A partir de agora, irei deixar os aspectos políticos-conteporâneos dos empréstimos lingüísticos e falarei um pouco sobre o processo de formação e de incorporação dos empréstimos numa língua, me deterei em apresentar mais especificamente os fenômenos que ocorreram em nossa língua portuguesa ao decorrer dos tempos.

OS EMPRESTIMOS LINGUISTICOS
Sabemos que toda língua adota e adapta vocábulos de outras línguas como parte íntegra de seu processo de desenvolvimento. A língua portuguesa atualmente adota principalmente vocábulos do inglês e do francês e os sujeita aos seus próprios preceitos lingüísticos. Os empréstimos se conformam à fonologia portuguesa e às suas regras de derivação. Os empréstimos também se adotam com restrições semânticas e às vezes com sensíveis mudanças de significado.

TIPOS DE EMPRÉSTIMOS LINGUÍSTICOS
O lingüista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Júnior, embasando-se no lingüista norte-americano Leonard Bloomfield, classifica os empréstimos lingüísticos em três tipos que são os empréstimos culturais, íntimos e dialetais:

• Aos empréstimos lingüísticos culturais pertencem todos os vocábulos adquiridos por meio de relações políticas, comerciais ou culturais entre povos de países diferentes.

• Os empréstimos lingüísticos íntimos são aqueles apreendidos quando duas línguas coexistem num mesmo território, por meio de reações íntimas no interior de uma determinada população.

• Os empréstimos lingüísticos dialetais são os resultados entre os falares de uma mesma língua, ou seja, da variabilidade lingüística regional, das variantes sociais e jargões especializados.

O LÉXICO – A INCORPORAÇÃO DOS EMPRÉSTIMOS
Uma língua não é estática, ao contrário, possui caráter dinâmico, evolui com o tempo. Desta maneira o léxico, aqui, entendido como o conjunto de vocábulos que formam uma língua, amplia-se, pois é através dele que esta se liga ao mundo externo e reflete os aspectos culturais da sociedade que a usa como meio de comunicação. É no léxico de uma língua que se acham incorporadas as experiências de uma comunidade de fala.
Toda língua pertence, fundamentalmente, a dois sistemas que englobam as classes de palavras, ou seja, o léxico ou pertence ao sistema aberto ou ao fechado. Ao primeiro, pertencem o substantivo, o adjetivo, o verbo e o advérbio nominal; ao segundo, o artigo, o numeral, o pronome, o advérbio pronominal, a preposição, a conjunção e a interjeição. Assim, novos vocábulos pertencentes ao sistema aberto podem ser incorporados ao léxico de uma língua. A esse processo denomina-se ampliação lexical que é o que chamamos popularmente de empréstimos lingüísticos, os quais não representam exatamente uma inovação vocabular, mas uma adoção de termos de outras línguas. “é a adequação da língua como saber lingüístico à sua própria superação e tem como determinante fins culturais estéticos e funcionais”.

DIVISÃO DOS EMPRÉSTIMOS LINGUÍSTICOS
Os empréstimos lingüísticos estão divididos em culturais e íntimos, onde dos primeiros fazem parte todos os vocábulos estrangeiros adquiridos em “virtude das relações políticas, comerciais ou culturais, propriamente dita com povos de outros países” . Nos empréstimos íntimos, duas línguas coexistem num dado território, não se processando “de fora para dentro, mas por meio de reações íntimas no próprio interior de uma população dada” . Como exemplo de empréstimo intimo, podemos citar o guarani e o espanhol, presentes no Paraguai; o português e o espanhol, na região fronteiriça entre Brasil e Bolívia, em Guajará-Mirim, no Estado de Rondônia.
Nesse tipo de empréstimo, uma língua predomina sobre a outra, “Há então uma língua forte, porque predominante na sociedade” . Dessa forma, poderão ocorrer três fenômenos: ou a língua dominada desaparece, restando um substrato na língua dominada, ou a língua dominante desaparece deixando um superstrato na língua dominada, ou permanecem as duas línguas, havendo troca de elementos, originando um adstrato. Também, nos empréstimos culturais, há, como nos íntimos, a predominância de uma das línguas: no português, existem termos estrangeiros por força de hegemonia cultural, como: langerie, abajur, chofer, madame (do francês), show, outdoor, e-mail, leasing, over (do inglês). Nas relações comerciais, os empréstimos são recíprocos:

“Não há, propriamente, uma língua predominante, que empresta sem tomar emprestado. Um povo ocidental ‘civilizado’, orgulhoso da superioridade da sua língua, pode nestas condições assimilar variados vocábulos de tribos ínfimas e selvagens. Comprova-o o inglês nas suas vicissitudes comerciais pelos sete mares do mundo”.

Vários são os fatores que podem gerar empréstimos íntimos:

• Imposição da língua dos conquistadores, havendo o predomínio imediato desta, aonde vários imigrantes chegam ao território conquistado, trazendo seus pertences, mulheres e filhos, situação em que os empréstimos vocabulares refletem as características e costumes na nação invasora. O português em relação ao tupi é um exemplo dessa transposição de cultura e sociedade e banimento dos elementos locais, os quais deixam apenas algumas marcas, como, nomes próprios e comuns geográficos, nomes de plantas e animais, mezinhas, comidas aprendidas com os nativos, em forma de substratos.

• Imposição lenta e gradual da língua dos conquistadores, havendo anexação do território conquistado em condições de província. É o caso da romanização do Ocidente durante a expansão do Império Romano, onde a língua dos vencedores foi imposta aos vencidos que permaneceram dentro do seu esquema social, assimilando a nova língua e cultura. Neste caso, também, da língua do povo vencido restam apenas substratos, emprestados à língua dos vencedores, numa situação de diglossia.

• Domínio de um grupo pequeno que desaparece, deixando marcas na língua do vencido como superstrato. Serve como exemplo para esse fenômeno o inglês que possui inúmeros termos vindos do francês por causa das conquistas normandas na Inglaterra.

• A imigração, propriamente dita que leva seus traços para a língua dominante no país em que se instalam para tentar fortuna, como é o caso de imigrantes os Estados Unidos da América, Brasil, entre outros. Estes têm a preocupação de assimilar, da melhor maneira possível, a língua do novo meio social e, a o mesmo tempo, podem infiltrar termos do seu léxico de origem, os quais, na maioria das vezes, são refutados. Ilustram esses fatos, no inglês, o vocábulo hambúrguer, de origem alemã, e, no Brasil, pizza originário do italiano.

São exemplos de empréstimos lingüísticos no Brasil:

• Indianismos: são resultantes da adaptação dos colonizadores. Servem de ilustração para esse tipo de empréstimo os vocábulos jerimum, macaxeira, muriçoca, carapanã, abacaxi, capixaba, açaí, cupuaçu, entre outros.

• Africanismos: resultantes do convívio com os escravos domésticos, principalmente com aqueles do sexo feminino (mucamas, cozinheiras). São exemplos desses empréstimos: macumba, mocotó, caxumba, jiló, banana, zebra, girafa etc.

• Outros estrangeirismos vindos com levas de imigrantes: piano, chau, pizza (do italiano), guerra (do alemão), chocolate, xícara, cacau (do espanhol) muitos outros.

EMPRÉSTIMO LINGUÍSTICO DIALETAL

Segundo Bloomfield, ainda, existe o empréstimo lingüístico dialetal que se realiza entre falares da mesma língua, ou seja, resultante variabilidade lingüística regional, das variantes sociais e jargões especializados. É feito interior da comunidade lingüística, envolvendo formas variantes da mesma língua. Pequenas comunidades lingüísticas são envolvidas por duas forças contrárias a que Saussure chamou espírito de campanário – a qual opera “no sentido de assegurar a estabilidade da língua diante de influências que o penetram de todo lado, provenientes de falares congêneres” e espírito de intercurso – que possui a tendência de quebrar separação existente na língua, através de constantes empréstimos feitos a outros falares.

O empréstimo dialetal afeta de forma diferente o sistema lingüístico, podendo modificar sua estrutura básica. A influência da variante popular sobre a norma culta é uma ocorrência observável na língua portuguesa: o caso de a gente como pronome. Também a variante regional de maior prestígio influencia com seus termos as demais. No Brasil isto ocorre com variante do Centro Sul (Rio – São Paulo) em relação às outras regiões. É o empréstimo de prestígio – fonológico, sintático ou lexical.

Como empréstimo dialetal, inclui-se língua especial, caracterizada por termos técnicos de cada área profissional que se tornam empréstimos lingüísticos quando são aproveitados com o valor rigorosamente técnicos, uso corrente, ou quando termos do uso passam a ser utilizados com sentido uma determinada profissão, decorrente “da delimitação significativa que o termo adquire determinados contextos da língua especial última análise de natureza sintagmática”. Fazem parte, ainda, do empréstimo gírias, propriamente ditas, e a língua literária. As gírias se desenvolvem em contraste com a língua comum, através das classes populares. Isso se dá mais especificamente nos grandes centros urbanos, caracterizando, também “uma atitude estilística (...) de desrespeito intencional à norma estabelecida”. A língua literária, posta em confronto com a língua comum, também apresenta empréstimos, tornando-se, assim, uma língua secundária. Isso se justifica pelo fato de as escolas literárias ou autores possuírem estilos próprios, como, por exemplo, a obra de João Guimarães Rosa, que não corresponde à realidade da língua comum do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, não existe língua pura, nem estática. Uma das características principais da língua é que ela evolui com o tempo, por isso é dinâmica. Esse dinamismo se vê com mais clareza no léxico, pois este se expande com bastante freqüência para incorporar as experiências pessoais e sociais das comunidades de fala. Com essa expansão lexical, ocorre o fenômeno denominado empréstimo lingüístico, que é a adoção de termos de outra língua ou de termos pertencentes à mesma língua, envolvendo vocábulos das diversas regiões onde esta é utilizada.
Embora o empréstimo não represente uma inovação lingüística, é um mecanismo de grande importância na ampliação do léxico de uma língua, uma vez que os falantes de línguas vivas mantêm um contato interpessoal por causa de sua convivência, promovendo intercâmbio cultural, social e político, utilizando-se, para isso, de um sistema lexical, que é a soma de experiências da sociedade e da sua cultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS



CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Princípios de Lingüística Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1974.


CARVALHO, Nelly. Empréstimos Lingüísticos. São Paulo: Ática, 1989 (Série Princípios).


FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Lingüística I: Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2002.


FARACO, Carlos Alberto (org.). Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 3ª ed. 2004. pág. 26.

FRONTEIRA ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO NA PRIMEIRA PARTE DA OBRA O CEMITÉRIO DOS VIVOS DE LIMA BARRETO


Cláudio Henrique de Souza Pires**

Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.
(Lima Barreto)


Neste artigo abordarei a influencia da biografia de Lima Barreto em suas obras, mas especificamente no volume O Cemitério dos Vivos, na primeira parte O Diário do Hospício. Serão tratados alguns temas de relevância tais como: os limites entre a biografia e a ficção e a biografia como concepção literária de acordo com os estudos de teoria da literatura. A metodologia adotada neste artigo foi desenvolvida a partir de reflexões sobre a conduta psico-social do escritor, e suas atitudes durante o período em que passou no hospício, além de comparar com outras obras anteriores ao Diário do Hospício e analisar quais as semelhanças e diferenças encontradas nessas obras e o Cemitério dos Vivos, e assim descobrir qual é o limite que existe entre a realidade e a ficção literária no texto de Lima Barreto. Veremos mais detalhadamente a fusão biográfico-literária; o Diário – realidade ou ficção; projeto ficcional ou realidade em foco; configuração da narrativa – a intenção do autor; a loucura – motivação para a escrita; as personagens – o universo da ficção limana. Em suma, o que se fez ou se faz do autobiográfico e do ficcionalismo na obra de Lima Barreto motiva o desenvolvimento deste artigo.

Palavras chaves: Literatura brasileira, pré-modernismo, Lima Barreto, realidade ou ficção.

A questão da fusão biográfico-literária na obra de Lima Barreto
O Cemitério dos vivos é uma produção literária que representa a ousadia de um escritor que se punha além do seu tempo para assim refletir dentro do aspecto escrituristico as mazelas sociais da realidade brasileira do inicio do século XX. Através de uma capa ficcional, este escritor conseguiu transpor a censura contemporânea e mostrar uma outra face do submundo do Brasil, mergulhando profundamente no intimo do ser humano, por essa razão, foi considerado por muitos críticos um escritor da “alma humana”.
N’O Diário do Hospício, o escritor ocupa-se mais dos outros que de si. Encontramos, em suas paginas, expressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as alusões constantes ao problema da cor ou a adoração nacional pelos doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha.
Lima Barreto não combate em seu próprio benefício; os preconceitos e as injustiças despertam a sua ira pelo que são, e não pelo fato de atingirem a ele. Longe de ser um ressentido, é ele um lutador, um escritor consciente das desigualdades, das degradações de natureza ética e estética, um ser humano cheio de fervor, sonhando um mundo menos estúpido e clamando até a morte sem meios termos, sem frieza, assumindo posições claras a sua verdade que defendia.
Pouco afortunado na sua vida familiar, - a morte prematura de sua mãe, e a loucura de seu pai devido a vícios -, nada conhece Lima Barreto das riquezas e honrarias legada aos abastados de sua época, devido a seu insucesso na vida acadêmica e a sua falta de sorte como escritor, - com quatro romances publicados sem o devido reconhecimento do publico -, dedica-se a vida boemia e entrega-se ao vicio, até chegar um momento que acaba perdendo a sanidade mental e começa a andar igual a um andarilho pelas ruas do subúrbio carioca, não tendo mais solução é internado como indigente no Hospício, sem que se registre em seu favor alguma solidariedade, sendo também rara a presença de amigos. Ele foi internado duas vezes, a primeira por ordem policial e a segunda por decisão de seu irmão. O hospício naquela época era uma arma nas mãos dos que tinham poder, dos que podiam decidir quem era, ou não, apto a viver em sociedade. Tinha função muito útil para a realização do “progresso” da humanidade por que mantinha a ordem de dominação para afastar aqueles que não se adaptam à ordem vigente presente nas sociedades de classes.
Dessa forma, foi natural que algo de uma vida tão cercada de pressões refletisse na sua obra e isto ocorre em verdade. Observe seu depoimento em um trecho da sua narrativa:

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro. ¹

Sendo assim, Afonso Henriques de Lima Barreto, segredado e envolvendo, no seu olhar desperto avaliador e sensível a mudanças, ante a janela aberta do Hospício Nacional de Alienados, as montanhas, o mar e o casario sob a manhã nevoenta de janeiro, enquanto medita outro romance que não chegará a concluir, vive nesses dias, tão preso ao personagem-narrador, que se confunde com ele em seus apontamentos sobre o Hospício de Alienados, é um pouco a imagem de seu próprio destino e da sua atitude em face do mundo. Lima Barreto realizava a transposição direta da realidade para a ficção. É possível reconhecer nos seus textos ficcionais e principalmente n’O Diário do Hospício marcas da escrita memorialista. Porem para reconhecermos isto no texto O Diário do Hospício de Barreto é necessário fazermos uma leitura ambígua da narrativa, na leitura ambígua – defeitos passam a ser virtudes e vice-versa.
Escolhi trabalhar com essa temática na obra limana, primeiramente, devido à dificuldade de aceitação desse texto como sendo ficcional, por parte da maioria dos leitores despercebidos, que normalmente ver este texto como confissão do escritor, e depois porque percebi que essa é uma temática pouco alargada no meio acadêmico.


O Diário – realidade ou ficção
O Diário do Hospício pertence ao gênero narrativo e ao subgênero de memórias, por que é uma história situada na figura do autor ou a partir da sua subjetividade. Mesmo sendo um diário, cronologicamente mais próximo dos acontecimentos narrados, é necessário fazer uso da memória para que o texto tome a devida forma.
A arte literária deriva de uma atividade prática do homem de criar outras realidades por meio de palavras. A criação literária é coisa diferente da realidade, mas também significa aparentemente o contrário, ou seja, que a realidade é o material da criação literária. Sendo assim, o escritor parte da sua percepção de realidade para chegar à ficção. Essa percepção pode ocorrer de forma direta e, ou indireta. A direta é quando o escritor observa o mundo, os outros homens, as idéias, concepções, produtos humanos ou observa a sua própria natureza. A forma indireta quando o escritor cria sua obra a partir de outra obra ou toma conhecimento dos fatos por meio da informação de terceiros.
Basicamente foi isso o que ocorreu com Lima Barreto ao compor a sua obra O Diário do Hospício, ele partiu do real para a ficção, e a situação real que ele tinha na percepção direta foi suprida na indireta pela sua imaginação. A imaginação é então um dos três processos principais para a apreensão da realidade. Por ser criado a partir de processos de percepção da realidade, O Diário do Hospício será sempre uma obra imaginada, assumindo sempre uma nova forma, ou seja, a forma ficcional. Observe que Lima em sua narrativa aponta outras obras literárias que correspondia à situação narrada naquele momento:

Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria. ²

O romance, dentre as obras literárias é a que melhor tenciona a relação realidade e ficção. A personagem e o narrador são os mediadores da representação da realidade; são eles, após trabalho do autor, que vão dar ao leitor um relato completo e autêntico da experiência humana. O comportamento deles autentica a verdade proposta pelo enredo.
E nada seduz mais o leitor que o romance de memórias. Primeiro pela narrativa em primeira pessoa, o que confere a experiência relatada ao próprio narrador, funciona como o “eu” das memórias autenticas. O narrador de memórias parte de um ponto determinado e a partir dele evoca a totalidade da sua vida passada. Em alguns casos, para entender o próprio passado, em outros, para explicar a si mesmo o momento presente. Ou seja, o eu que narra não é mais o eu de quem se fala. Provavelmente por isso o autor d’O Diário do Hospício deve ter preferido escolher este tipo de composição textual (romance de memórias).


Projeto ficcional ou realidade em foco.
O romance O cemitério dos vivos parte das anotações realizadas por Lima Barreto durante a sua segunda estada no Hospício Nacional de Alienados, no período de 24 de dezembro de 1919 a 04 de fevereiro de 1920. É o próprio autor, ainda interno do hospício, que dá notícia do seu novo plano de trabalho ao repórter do jornal A Folha: “Tenho coligido observações interessantíssimas para escrever um livro sobre a vida interna nos hospitais de loucos. Leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro destas paredes inexpugnáveis”. Essa entrevista está relatada no romance.
Quando questionado pelo repórter se já possuía uma data para o lançamento do romance, Lima Barreto, responde: “Não sei. Agora só falta escrever, meter em formas as observações aqui reunidas. Esse trabalho pretendo começar logo que saia daqui, porque aqui não tenho as comodidades que são de se desejar para a feitura de uma obra dessa natureza”.
Então você percebe que embora o texto parta da realidade de seu contexto vivido, Lima Barreto pretende criar sim, um projeto ficcional, pois, ele apresenta esta proposta no próprio romance. Não é de fácil compreensão essa mesclagem, a fronteira entre a realidade vivida e o texto ficcional é quase invisível, uma mente despreparada tende a pensar que tudo é uma coisa só, mais não é. O texto na sua integra podemos absolutamente afirmar que trata-se de um projeto ficcional.


A intenção do autor – literalidade ou literariedade?
O romance O cemitério dos vivos integra o volume homônimo que abriga também em suas páginas as seções intituladas o Diário do hospício, o inventário da biblioteca do autor – a Coleção Limana –, documentos referentes às internações de Lima Barreto no Hospício Nacional de Alienados e a entrevista concedida pelo autor para o jornal A Folha. Segundo alguns críticos trata-se de um volume de memórias. No entanto como se percebe pela descrição das partes que o compõem estão ali diferentes tipos de composições textuais: uma entrevista, documentos burocráticos, notas pessoais e o texto ficcional em formato não definitivo. Assim, a afirmação de que se trata de um volume de “memórias” acaba por confundir o leitor, sugerindo a leitura de O cemitério dos vivos como um exercício de autobiografia.
A princípio os dados do Diário do Hospício estavam organizados em cinco seções intituladas: O pavilhão e a pinel; Na Calmeil – Os primeiros dias; Minha bebedeira e minha loucura; Alguns doentes e por fim Guardas e enfermeiros.
Ao Diário do hospício são acrescidos cinco capítulos: o VI, em que o narrador trata de outros doentes, o VII em que se percebe maior rigor na narrativa e traços ficcionais como, por exemplo, referências à mulher e ao filho; no VIII descreve a biblioteca, o IX é a reescritura do capítulo anterior e, por fim, o capítulo X que são as notas realizadas no hospício.
Lima Barreto observava e anotava o comportamento dos internos, guardas, enfermeiros, e médicos assim como, do ambiente do hospício, das seções a que foi sendo transferido e das leituras que fazia na biblioteca da instituição. Com seu olhar atento procurava avaliar o que se passava. Escrever para ele, naquele momento, era uma maneira de escapar do silêncio, a escrita simulando a vida, ou uma prática destinada a exercitar a palavra. Essas anotações foram como que uma condição de salvação, de manter a lucidez e não perder a perspectiva crítica.
Os capítulos I ao IX formam um texto à parte dentro da narrativa que se convencionou chamar de Diário do hospício. O material que o compõe desperta especulações, pois não atende as características básicas de um texto que se quer diário: não respeita o calendário e está todo ele organizado em capítulos, em que se desenvolvem as opiniões do narrador em registros de fôlego a respeito da sua entrada no hospício, internos, considerações sobre a loucura. Fatos que contrariam o princípio da fragmentação.
Poder-se-ia supor, então, que se trata de uma autobiografia puramente realista, mas não é possível estabelecer um pacto de leitura com o narrador, pois não há uma identificação dessa voz narrativa. Mas a principio em nenhum momento o narrador se identifica como Afonso Henriques de Lima Barreto, como fez em outra obra sua chamada de Diário Íntimo, onde se pode ler:

Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. ³

Além de não se identificar como Afonso Henriques de Lima Barreto, o narrador do Diário do Hospício altera seu nome. A princípio é o Doutor L, quando conta a seguinte história:

Uma noite, às últimas horas, muito bêbado, pedia V. que me levasse ao bonde, que passava na Rua Sete de Setembro. Esperei no poste, em frente ao canil, o veículo e, de repente, focinhei no chão. V., que já morreu e era muito mais forte do que eu, levantou-me, equilibrou-me e pôs-me de pé. De repente, veio uma rapariga preta, surgida não sei de onde, que perguntou a V. (foi ele que me contou): - A patroa manda perguntar o que tem o doutor L.? V. respondeu: - O doutor L. está um pouco incomodado, devido a ter se excedido um pouco. Não é nada. º

E num segundo momento é Tito Flamínio, personagem da primeira versão de O cemitério dos vivos: “Estava deitado no dormitório que me tinham marcado e ele chegou [o guarda] à porta e perguntou: - Quem é aí Tito Flamínio? – Sou eu, apressei-me”.
Outro detalhe é que o narrador relata que a mãe está em casa. A mãe de Lima Barreto, dona Amália Augusta Barreto, morreu em dezembro de 1887, quando ele tinha seis anos de idade. Menciona um filho doente, embora o autor não tivesse filhos e não haja registro de qualquer tipo de união com uma mulher: são apenas personagens ficcionais citadas no corpo do suposto diário, como transcrito abaixo:

Aborrece-me este hospício; eu sou bem tratado, mas me falta ar, luz, liberdade. Não tenho meus livros a mãos; entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu Deus! Tanto faz, lá ou aqui... Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é a minha casa.
Meu filho ainda não delira; mas a toda hora espero que tenha o primeiro ataque. (....) Minha mulher faz-me falta, e nestas horas eu tenho remorsos como se a tivesse feito morrer. Logo, porém, como vem de mim ou de fora de mim uma voz que me diz: é mentira.


Todos esses detalhes levam a crer que se trata de um texto ficcional, que procura atender as exigências estéticas de Lima Barreto: de autenticidade, de comoção do leitor, de diálogo, que seriam favorecidas pela narrativa em primeira pessoa. A narrativa centrada no sofrimento humano seria um meio de estreitar as diferenças entre os homens. N’O Diário do hospício, que pela estrutura deveria ser chamado de Memórias do hospício, Lima Barreto, volta a valorizar o testemunho, a narrativa introspectiva para trazer ao leitor a experiência da solidão.
O texto do diário desperta a atenção ao primeiro contato. Inicialmente pelo título e num segundo, o mais atrativo ao leitor, pelo conteúdo: o cotidiano no hospício, no melhor estilo “baseado em fatos reais”. O narrador facilmente envolve o leitor, devido às situações narradas e à maneira como o faz: usa de linguagem simples e adequada ao tom confessional do texto.
Possivelmente esse tom verossímil que se apresenta na narrativa limana é um recurso a mais para atrair a atenção dos leitores, que, provavelmente durante o inicio do século XX interessavam-se por narrativas de diários e principalmente tratando-se de um assunto tão polêmico que era um tabu na época, a loucura.

4 de janeiro. Estou no hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos e tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do vestuário que me é hoje indispensável.

Um leitor desatento, provavelmente ficaria confuso ao ler um texto com essa riqueza de gêneros interligados, e talvez até possa pensar que esse texto não tem nada de ficcional.
Outra característica desse narrador é a rapidez com que vai contando os fatos: no primeiro capítulo informa ao seu leitor quando entrou no hospício, como é o tratamento recebido, que esteve internado antes, que não se acredita louco, mas que devido ao álcool e apreensões domésticas e financeiras viera para ali. Faz comentários sobre os médicos, guardas e enfermeiros e sobre a transferência para outra seção. E por fim promete que vai contar a “tragédia manicomial em separado”, mas que no momento vai suspender a narrativa porque se cansa. Cria, entretanto, o gancho para manter o leitor esperando por mais informações:

Paro aqui, pois me canso; mas não posso deixar de consignar a singular mania que tem os doidos, principalmente os de baixa extração, de andarem nus. Na Pinel [seção do hospício em que estava internado], dez por cento assim viviam, num pátio que era uma bolgia do inferno. Por que será?

Indiscutivelmente depois da analise desse fragmento não resta dúvidas quanto à composição literária desse texto, ele apresenta de forma quase imperceptível a maneira como segurar um leitor ao longo de suas narrações.
Através desse recurso utilizado pelo escrito, percebemos que seu objetivo ia mais além do que escrever um simples diário intimo ou querer narrar simples fatos da sua vida no hospício, percebemos que ele tinha uma intenção colossal com a escritura desse diário. Talvez a intenção fosse como nós sabemos, escrever um romance que perpetuasse além dos seus dias. E foi isso que ele fez. Ele procurou através dos fatos vividos por ele em seu cárcere privado, ou, aliais coletivo, criar um texto ficcional que englobasse a sua vida por um todo.


A loucura – motivação para a escrita.
N’O Diário do hospício, a loucura é motivação para um capítulo e passa a ser analisada sob a ótica científica; é mistério e precisa ser pesquisada, no entanto logo depois deixa de ser ciência e passa a ser mistério:

Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. (...) Há uma nomenclatura, uma terminologia, segundo este, segundo aquele; há descrições pacientes de tais casos, revelando pacientes observações, mas uma explicação da loucura não há.
Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura, não parte da verdadeira causa. O que todos julgam, é que a cousa pior no manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação à outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso
da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.

O processo criativo é um exercício constante de acúmulo e renúncia de dados, idéias, palavras, de tempo. No caso do processo de criação de O Diário do Hospício não foi diferente. Por meio da analise feita verificou-se que Lima Barreto, pelo que se deduz dos manuscritos e anotações dele no hospício, desenvolvia as notas à medida que coletava as “observações interessantíssimas” do hospício. Podemos comprova isto quando lemos no capítulo V o seguinte fragmento:

Ontem matou-se um doente, enforcando-se. Escrevi nas minhas notas: “Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia Tão belo como o de hoje”. Não me animo a dizer: venceste, Galileu; mas, ao morrer, quero com um sol belo, de um belo dia de verão!

Isto faz pensar que o texto do diário foi desenvolvido ainda dentro do hospício, e num primeiro momento até atendeu as expectativas do escritor, mas não a contento de modo que era necessário empreender o romance.
De acordo com o contexto da narrativa de Lima Barreto, o romance foi produzido praticamente após a alta da instituição. Provavelmente 7 de fevereiro de 1920, cinco dias após a saída do hospício. Lima Barreto, em sua busca de formas literárias que melhor pudessem soldar e ligar a humanidade em uma maior reflexão, não deveria estar satisfeito com a narrativa do diário, mais objetivo, e pouco envolvente aos olhos do leitor, a não ser para satisfazer a curiosidade daqueles que gostariam de vivenciar por meio da leitura a experiência interna do hospício. Era necessário erguer o texto a um estágio de maior tensão emocional para que atendesse à sua estética militante, que era de produzir uma literatura de reflexão da realidade, opção que começou a desenvolver em alguns capítulos do diário, mas de modo ameno e insuficiente frente às suas expectativas. Afinal a experiência de internamento fora singular e poderia ir além do desenvolvimento de “observações interessantíssimas” sobre a vida dentro do hospício. Então foi a partir da temática da loucura e com a experiência vivida que intencionalmente começou aflorar a literariedade do Diário, na sua forma propriamente dita.


As personagens – o universo da ficção limana
A arte literária de fato seria uma atividade individual, porém que após a reelaboração deixava de pertencer ao artista e passaria a fazer parte do mundo com o objetivo de diminuir diferenças. Observa-se nessa proposta do autor umas das qualidades do texto ficcional: atingir temas universais quando trata de problemas subjetivos das personagens.
Para Lima Barreto, a arte estava longe de ser apenas entretenimento, deveria promover reflexões sobre a condição humana, e, a partir delas estabelecer união entre os homens, possibilitar a quem lesse seus escritos. Ele procurava evidenciar que uma narrativa centrada no sujeito, e mais precisamente no sofrimento, poderia diminuir o distanciamento e a diferença social.
Lima Barreto estava muito ciente do que fazia, não era um escritor relapso ou em busca de reconhecimento imediato. Sabia do risco que envolvia suas opções, mas optou por partir de um olhar de quem está de fora, à margem, e não é possível negar que é um olhar privilegiado, de quem transitava por sociedades distintas e não se sentia parte de nenhuma delas.
Na obra O cemitério dos vivos, a preocupação com o desenvolvimento das personagens torna-se claro, pois das noventa e sete notas que compõem o capítulo X do diário cerca de dois terços tratam dos tipos humanos que dividem o espaço com o narrador, em sua segunda estada no hospício.
No Diário do Hospício, do capítulo I ao IX foram identificados setenta e um personagens. No capítulo X, da mesma obra, foram estabelecidas as identidades de cinqüenta e nove indivíduos, entre internos, funcionários administrativos, amigos e familiares.
Gostaria de salientar que a descrição das personagens na obra limana, serve, pura e tão somente para indicar o grau de ficcionalidade do texto, embora sejam seres reais em qualquer sociedade e em qualquer época, o modo como o escritor retrata cada cena, cada situação vivida, nos dá a entender que existe uma fronteira que ele ultrapassa entre a realidade e a ficcionalidade. Observe atentamente a esse detalha no trecho abaixo:

Meu vizinho de dormitório é um rapaz cuja loucura reagiu sobre o seu aparelho vocal a ponto dele mal falar e com esforço. Olha-me estupidamente, e com um olhar parado e de um único brilho, e tem a mania de incapacidade de ingerir qualquer alimento. Tudo se tem experimentado: leite, frutas, até um irrigador; mas é em vão. Ele não ingere nada e, se ingere à força, logo vomita, debilita-se e dá em suar as catadupas.
Esperando a sua morte próxima, a família levou-o para casa. Vai mudar de cemitério — coitado! Para esse, não houve um intervalo entre os dois.


As características de personalidade dos personagens, assim como as descrições das seções do hospício servem ao processo de criação literária, porém, o que ocorre é que as características de personalidade originais são acrescidas de outras que vêm decorrentes das leituras de Lima Barreto ou que são decorrentes da sua imaginação. No entanto, qualquer que seja a opção, o autor tinha em mente ligar a humanidade em uma maior e para que pudesse atender a esse objetivo, manteve-se como um equilibrista entre a realidade e a ficção.


Considerações finais
Lima Barreto estava preso à vida presente, aos homens presentes; eram eles a sua matéria para falar a nós os homens futuros. Fez de suas páginas de ficção memória do seu tempo presente. Tal atitude, taxada de personalismo, despertou na crítica um olhar ambíguo sobre seus escritos, pois ora eram defeitos ora virtude. Se eram defeito ou virtude a Lima Barreto pouco importava, pois a literatura para ele nunca fora entretenimento silencioso.
Fica claro, portanto, que o registro memorialista, refundido ficcionalmente, longe de ser traço de espontaneidade ou imperícia, constitui-se em opção estética manifesta, em busca de efeitos expressivos particulares bem como de favorecer a comunicação entre os leitores.
Para a sua estética engajada, militante, os gêneros pouco interessavam, pois como ele mesmo escreveu, queria comunicar e estreitar o relacionamento entre os homens. Dessa forma percebemos a grandiosidade de sua obra, que ainda hoje encanta muitos leitores pela verossimilhança e fusão biográfico-literária apresentada e a metalinguagem em explicar sobre a sua estética dentro da sua obra.






























Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed. São Paulo: Cultrix,
2001.

BOSI, Alfredo. O romance social: Lima Barreto. In: História concisa da literatura
brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 316-324.

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO NA CRÔNICA LOPEANA E NA EPOPÉIA CAMONIANA


Cláudio H. de S. Pires – UESB/JEQUIÉ**

Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram:[...]
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(canto I, est. 3, vv. 1-8).


RESUMO

Neste trabalho apresentarei um estudo comparativo sobre o episodio de Inês de Castro na obra de Fernão Lopes, na qual, predominou o estilo literário Humanista/Renascentista e na epopéia Camoniana Os lusíadas em que predominou o Classicismo/Renascentista. Dentre as obras destes autores que possibilitam semelhante análise me detive na observação dos estilos dos autores, o período literário na qual se inseriram a construção da personagem Inês de Castro em ambas as obras, a contextualização histórica da vida dos autores e da construção da crônica lopeana e da epopéia camoniana e a influencia da crônica lopeana na epopéia Os lusíadas. Fiz a escolha destes tópicos por considerá-los de significativa expressão e autenticidade. Partindo do pressuposto de que a literatura retrata os problemas sócio-políticos e os conflitos amorosos, procurei observar a caracterização dos sujeitos da época como uma referência para identificar traços da concepção de arte e de conduta dos escritores Fernão Lopes e Luís de Camões, mapeando a transposição destes para as personagens que cria ou rememora. Embora tais obras tenham sido escritas em diferentes épocas, com características peculiares do seu tempo-espaço, busquei traçar um paralelo com os aspectos que se assemelham entre ambas as obras, como também, estabelecer comparações acerca de possíveis visões que venham se reproduzindo até a sociedade vigente.

Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Inês de Castro, Fernão Lopes e Luís de Camões.


1. O estilo dos autores.

Fernão Lopes

Fernão Lopes distinguiu-se de seus contemporâneos pela imparcialidade e pelo trabalho de pesquisa. Outros cronistas idealizavam os feitos da nobreza que os patrocinava; baseava-se na tradição oral, que, colhida em fontes diferentes, resultava num relato muitas vezes incongruente, quando não fantasioso.
Lopes aproximava-se mais do modelo de historiografia moderna, como se pode ver pelas seguintes qualidades de suas crônicas: foi pioneiro na investigação e pesquisa de fatos e documentos; praticou um relato objetivo e sem partidarismo; valorizou as massas populares, considerando-as co-agentes da história; além dos fatos políticos, soube entrever a importância dos fatores econômicos para a constituição de eventos históricos. Seu espírito crítico, seu conhecimento de autores clássicos (como Aristóteles e Cícero, por exemplo) e sua visão da importância homem como agente da história revelam a filiação ao espírito do Humanismo, que ele introduziu em Portugal.
Suas crônicas apresentam qualidades superiores. Como estilista, soube captar o caráter épico de seus temas e expressa-lo de forma vibrante e arrebatadora, prendendo a atenção do leitor num suspense continuo; como narrador soube dar expressão ao conteúdo emocional de sua matéria. Sua linguagem possui um poder plástico extraordinário, que permite a visualização palpitante de assembléias e festas populares; além da plasticidade, é também dramática, como se pode ver nos diálogos cheios de tensão, que Fernão Lopes empresta as figuras históricas, e nas inúmeras cenas tocantes (como as das agruras do povo por ocasião do cerco de Lisboa pelas forças de Castela), em que se pode avaliar o talento teatral do grande cronista.
Essas e outras qualidades, mais a antiguidade dos textos de Fernão Lopes levaram a crítica e a historiografia literária a chamá-lo “pai da prosa portuguesa”.
Não existem dados biográficos conclusivos a respeito de Fernão Lopes, teria nascido entre 1380-90 na cidade de Lisboa numa família de origem humilde. Por conseguinte, durante o amadurecimento do cronista, faziam-se recentes na memória dos portugueses os acontecimentos e personagens da chamada Revolução de Avis (1382-5). Este movimento foi, na verdade, um golpe sucessório auxiliado pela população camponesa, comerciantes, alguns membros da nobreza e ordens religiosas, principalmente os franciscanos, no qual ascendeu ao trono D. João, Mestre de Avis. Dessa maneira, Fernão Lopes testemunhou os eventos relatados na sua última obra, elaborada acerca de 1443, a Crônica de D. João I, e pôde consultar os protagonistas envolvidos na resistência contra Castela e na paz firmada no ano de 1411. O registro mais antigo da vida de Fernão Lopes é um documento de 1418 que atesta a função de Guarda-mor da Torre do Tombo, e escrivão de D. Duarte. Em 1419, como também escrivão de D. João I, começa, provavelmente, a redigir a Crônica dos sete primeiros reis de Portugal. Algum tempo depois, 1422, aparece intitulado escrivão da puridade do infante D. Fernando, mas somente na data de 1434, com o reinado de D. Duarte, Fernão Lopes recebe a incumbência oficial de colocar os feitos portugueses na forma de crônicas, que seria confirmada pela regência de D. Pedro e no posterior governo de Afonso V. Porém, cinco anos após o conflito de Alfarrobeira (1454), foi legalmente aposentado de todas as funções devido à idade avançada, já que desde 1451-2, Gomes Eanes Zurara assumira a composição dos textos e a guarda das escrituras.

Luís de Camões

O maior poeta da língua portuguesa, aquele que lhe deu a sua feição mais elevada, tem biografia obscura. Vários são os mistérios que pontuam a vida agitada e trágica de Camões.
Filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá Macedo, Camões descendia de família fidalga empobrecida. Alguns biógrafos pressupõem que Camões teria freqüentado a Universidade de Coimbra, por volta de 1540; outros afirmam que teria sido educado sob os cuidados de um tio clérigo, mas nada se sabe ao certo sobre isso. Seja como for, o poeta adquiriu uma formidável cultura humanística, como atestam seus versos, impregnados de erudição clássica.
Em vida Camões teve publicados quatro poemas líricos e sua epopéia clássica lusitana. Quinze anos após o falecimento do poeta, com base em cancioneiros manuscritos de procedência variada, foi publicada a primeira coletânea lírica atribuída a Camões, com o titulo Rimas de Luis de Camões. O acervo lírico camoniano de que dispomos é suficiente para consagrar Camões como um dos mais altos poetas líricos do Ocidente.
Camões é também autor de três peças de teatro, publicadas em 1587: Auto do Filodemo, El-Rei Seleuco e Anfitriões. As duas primeiras se aproximam da estrutura do teatro vicentino, enquanto a última segue o molde da comédia latina de Plauto. Mas não é no teatro que Camões se distingue como artista; o que importa conhecer e estudar é sua epopéia e sua lírica.
Para transmitir epicidade à sua mensagem, Luís de Camões recorre assiduamente à comparação baseado na Literatura da Antiguidade. Tal sucede, por exemplo, no episódio de Inês de Castro, quando o Poeta refere à orfandade dos filhos de Inês e compara a triste sorte desta mulher indefesa com o caso de Policena, que foi sacrificada por Neoptólemo por imposição de seu pai, Aquiles.
Qual contra a linda moça Polycena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena
(canto III, est. 131 vv. 1-3).

Ainda neste episódio surgem outras comparações igualmente elucidativas da posição de Luís de Camões face às ocorrências narradas. É o caso da história dos irmãos Atreu e Tiestes, que o Poeta utilizou para condenar a indignidade do ato cometido contra uma frágil donzela. Fingindo fazer as pazes com o irmão, Atreu ofereceu a Tiestes um banquete em que lhe deu a comer os próprios filhos como vingança da ligação ilícita entre o seu irmão e a sua mulher. O crime foi tão execrável que o sol se recusou a testemunhá-lo, afastando os seus raios.
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
(canto III, est. 133 vv. 1-4).

O Narrador também faz alusão aos irmãos que fundaram a cidade de Roma.
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como co a mãe de Nino já mostraram,
E cós irmãos que Roma edificaram:
(canto III, est. 126 vv. 5-8).

Luís de Camões faz o paralelo entre este caso e o martírio de Inês, considerando-os semelhantes a nível de atrocidades cometidas.
Neste episódio, apesar de se basear na verdade histórica, Luís de Camões também recorre à mitificação dos acontecimentos para sensibilizar o leitor. Ao desfigurar a realidade, o Poeta embeleza magnificamente o seu relato, apresentando, com um misto de veracidade e de lenda, uma das mais famosas e impressionantes histórias de Amor.
Considerando que a análise apresentada é bastante resumida, diante da importância de Os Lusíadas e o seu autor para a história da Literatura, julgamos ser válido ressaltar que: Camões, homem de sólida formação cultural, atento aos valores estéticos do classicismo literário e com ideais humanistas, de fato, soube interpretar o sentimento de orgulho nacional, resultante da consciência de que durante algum tempo, Portugal foi capaz de se destacar das demais nações européias.

2. O período literário no qual se inserem Fernão Lopes e Luiz de Camões.

Fernão Lopes

Humanismo é o nome de um movimento intelectual, uma doutrina filosófica e uma postura artística que representam a transição entre a cultura européia medieval e a do Renascimento. Teve inicio na Itália, entre o fim do século XIII e o inicio do século XIV, no outono da Idade Média.
Os Humanistas trouxeram de novo uma atitude de liberdade intelectual de que a Escolástica¹ não dispunha. Essa independência levou a conquistas que abalaram o teocentrismo. Entre elas, uma das mais expressivas é a da valorização do homem e da natureza.
A ideologia do teocentrismo dominou a cultura da Europa medieval. Como o nome diz, Deus é o centro. Tudo deve estar voltado para ele. A matéria deve ser desprezada e reprimida, pois suas necessidades grosseiras dificultam a ligação com o mundo do espírito, que é o de Deus. Como o reino da matéria é a natureza, é ela que deve ser negada. Assim, a doutrina teocêntrica postula que o homem deve lutar contra a natureza corpórea degradante para cuidar somente da vida espiritual, sob a orientação da igreja.
Os humanistas adotaram outra visão. Aprenderam a ver a natureza como testemunho da grandeza e bondade de Deus, como digna de ser valorizada e estudada racionalmente. Aprenderam também a reconhecer no homem qualidades superiores: a razão, a iniciativa, a capacidade de ação sobre a natureza e a história, o poder de influencia na construção de seu próprio destino. Esta visão de mundo otimista, assimilada de grandes clássicos da Antiguidade greco-romana, foi o germe do antropocentrismo, que viria a caracterizar o Renascimento.
A mentalidade humanista impregnou a arte e a literatura de novos valores e formas de expressão, preparando o terreno para a virada estética revolucionária do Classicismo renascentista.
O marco inicial do humanismo português se deu com a nomeação de Fernão Lopes para o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo, ou sua promoção à cronista-mor do reino, em 1434.

Luiz de Camões

Classicismo é o nome da escola artística do Renascimento. Suas idéias e realizações são, principalmente, frutos da assimilação da cultura greco-romana, decorrente dos estudos empreendidos pelo Humanismo. Iniciado na Itália, no final do século XV, o Classicismo difundiu-se pela Europa, ao longo do século XVI.
Renascimento é o nome que se dá às transformações culturais revolucionarias de um época trepidante, a da passagem da Idade Média para a Idade Moderna.
Após sete séculos de duração, o sistema político, econômico e social do feudalismo² entrou em colapso. O poder descentralizado do feudalismo deu lugar a um poder concentrado nas mãos dos reis. Com a queda do feudalismo, consequentemente a sociedade passou de uma economia agrária de subsistência para se produzir pensando em excedentes, para a comercialização no mercado que acabara de surgir com o renascimento das cidades e volta das moedas, com isso a economia se tornou dinâmica com as grandes navegações ultra-marinas que buscava mercadorias no Oriente.
O sistema de estamentos que estratificava rigidamente a sociedade feudal* começou a desagregar-se e a ser substituído por uma estrutura flexível e móvel, a da sociedade de classes, que viria a se realizar plenamente após a Revolução Francesa.
A essas transformações históricas devem ser somadas aquelas que abalaram a Igreja de Roma. Em 1517, Martinho Lutero entrou em atrito com a Igreja, que desencadeou a Reforma, e consequentemente a contra-reforma. Para aumentar a crise da Igreja, o renascimento da cultura clássica e o surgimento da ciência moderna foram golpes fatais para a filosofia escolástica e o teocentrismo.
Segundo a escolástica, o papel da filosofia não seria o de pesquisa da verdade, uma vez que esta teria sido revelada por Deus e estaria contida no livro sagrado; a filosofia caberia a tarefa de comentar a revelação divina, para esclarecê-la.
O Renascimento, ao contrário, estimulou a curiosidade intelectual, abrindo caminho para investigação conflitantes com a filosofia escolástica, uma vês que adotava a liberdade de pensamento como critério, e se dispunha a examinar as questões se curva-se perante os dogmas da igreja.
Influenciados pelo pensamento do Humanismo, estudiosos renascentistas voltaram suas atenções para a natureza. A orientação de suas investigações era dada pela observância dos fenômenos físicos e a analise racional dos fatos observados. Os fundadores da ciência moderna valorizavam o empirismo, submetendo à teoria racional a prova experimental, isto é, o conhecimento teórico deve ser confrontado com a experiência.
Assim como a ciência, a arte do Renascimento voltou-se decididamente para a natureza. Entendia-se que a obra de arte deveria imitar a natureza. Os renascentistas encontraram em Aristóteles esse conceito, que definia a arte como mimese (imitação da natureza, realidade e da vida).
O Classicismo do Renascimento é o culto e a prática dos valores artísticos presentes nos autores da antiguidade greco-romana, considerados de classe (de alta qualidade), daí o nome do movimento.
Os Clássicos do Renascimento estudaram e imitaram os clássicos da Antiguidade, voltando a pratica de formas e gêneros literários antigos e assimilaram também a idéia grega de que arte é a expressão de Beleza.
Serenidade, sobriedade e racionalismo são três características do Classicismo, também decorrentes da sabedoria grega, que recomendava: nada em excesso. A razão deve predominar sobre a emoção.
A forma clássica aspira ao equilíbrio e a harmonia da composição; está atenta ao senso de proporção; trabalha a linguagem com clareza e concisão; enfim, busca o rigor e a perfeição formal, obedecendo aos tratados de arte poética que consagravam modelos e regras a seguir.
O ideal de perfeição indica mais uma importante característica clássica: o universalismo. A palavra deriva do universo, que significa totalidade. O universalismo na arte se observa quando o geral supera o particular e as partes estão subordinadas ao todo.
Na literatura clássica, o universalismo se confunde com o idealismo, de inspiração platônica. Segundo Platão, as coisas do mundo sensível são efêmeras imagens imperfeitas das formas ideais, perfeitas, que vivem eternamente num mundo superior ao nosso, o mundo inteligível. Assim, o artista clássico valoriza os conceitos gerais, as idéias, que comumente se expressam em palavras iniciadas por letras maiúsculas sem necessidade gramatical (beleza, amor, real e etc.).
O Renascimento e o Classicismo revitalizaram a herança greco-romana, combinando com o legado do cristianismo³, de maneira a dar a este novos significados e perspectivas. Na pratica literária, a mescla de motivos pagãos e motivos cristãos é chamada fusionismo.
É certo afirmar que as tendências literárias se conflitam – não podemos determinar períodos exatos para cada obra da literatura – devido não se saber ao certo quando termina ou começa um processo histórico, pois um novo contexto histórico-social funciona como um sinal de novidades, sem, entretanto determinar a morte do padrão velho da estética literária. Mas vale ressaltar que, em cada momento histórico, há uma predominância de um padrão a ser seguido, caracterizado pelas transformações sócio-econômicas e culturais de cada época.
No Renascimento essas transformações influenciaram drasticamente no modo do homem compreender o mundo, que até esse momento limitava-se à extensão do feudo. O período das grandes navegações, aliado ao surgimento da imprensa ampliou os limites físicos do mundo e também os horizontes intelectuais do homem. Como conseqüência, o Teocentrismo começa a perder, gradativamente, espaço para o Antropocentrismo, que atinge seu ápice no Renascimento.
Como não poderia deixar de ser, a arte produzida nesse período também passa por transformações consideráveis, pois a vida religiosa, tema dos artistas até aquele momento, é substituída pelas emoções e pelo comportamento humano.
Nesse momento, as mudanças caracterizam-se com a revalorização da Antigüidade greco-romana e a conseqüente imitação de sua literatura, aparecem novamente os poemas épicos, que tomam como modelo as grandes epopéias dos gregos e romanos.

3. Construção da personagem Inês: características físicas e psicológicas.

D. Inês de Castro era familiar de poderosos nobres que ameaçavam a independência de Portugal. O seu relacionamento amoroso com o príncipe herdeiro fazia perigar o reino, tanto mais que Inês e Pedro tinham filhos que poderiam ameaçar a subida ao trono do legítimo herdeiro, D. Fernando, filho de D. Constança. Os conselheiros do rei vão insistir na necessidade de sacrificar D. Inês, exigindo a sua morte com base em argumentos políticos. É impressionante a súplica de D. Inês perante D. Afonso IV, tentando demovê-lo dos seus mortíferos intuitos, e, apresentando como principal argumento os seus filhos, netos do rei, que ficariam órfãos e desamparados:


A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
(canto III, est. 127, vv. 5-8).


Luís de Camões impregnou este seu episódio de um maravilhoso lirismo, personificando a própria natureza, que se compadece da morte de uma donzela tão bela.
Na época Inês era considerada uma mulher manipuladora que utilizava o seu poder junto do príncipe, em benefício de interesses alheios à coroa portuguesa. Só posteriormente, quando desapareceram todas as pessoas que poderiam testemunhar o seu caráter, é que se procedeu à transformação da sua imagem.
Embora fisicamente debilitada e sem forças, Inês de Castro, tinha um caráter forte e impregnante, o que a fez lutar pela sua vida até o último suspiro. Suas palavras eram mais fortes que as suas atitudes físicas, embora estas palavras não a fez conseguir livrar-se da ira do rei e seus súditos.


4. A contextualização histórica da crônica e da epopéia camoniana.

Fernão Lopes (crônica)

Fernão Lopes viveu num momento de intensa crise política. Encerrada a tentativa de invasão castelhana na Revolução de Avis, nenhum grupo detinha autoridade incontestável, enquanto a aristocracia entrava num processo de rearranjo hierárquico, uma vez que parte da antiga nobreza perdera prestígio ao apoiar a invasão estrangeira, o chamado terceiro Estado reunia-se nos pequenos conselhos rurais, urbanos (especialmente Lisboa e Porto), organizações de comércio e ofício. Assim, surgiu um sistema social disperso, cujas constantes lutas locais limitavam uma nova ação que envolvesse todo o território. Diante de tais condições Lopes fora designado para croniciar os feitos da nova dinastia, entretanto, somente o repertório formal e cronológico sob os quais, até então, se estabelecia o gênero crônica, não poderiam dimensionar o processo de abalo das tradicionais bases de poder desarticuladas no movimento ‘revolucionário’, pois, a revolta assentando-se no questionamento da ordem política colocava em suspeição as formas discursivas que constituíam a estrutura de poder senhorial. Lopes tentou racionalizar uma época instável, abstendo-se o quanto pôde do texto laudatório na busca pela isenção histórica, passível de uma verdade capaz de recontar com “çertidom” os acontecimentos. O cronista, apropriando-se, segundo Luís de Souza Rebelo, de um legado discursivo e cultural existente, envolveu-o numa nova trama, explicativa de um outro contexto que deslocava seu sentido original. Fernão Lopes trabalhou nesta margem “de integração do que é novo dentro das velhas estruturas mentais”.
A percepção do caráter problemático do estabelecimento do passado é o ponto de partida motivador da reflexão de Fernão Lopes. Essa percepção é paralela ao enfraquecimento das formas tradicionais de autoridade social e intelectual produzidas pelos acontecimentos da Revolução de Avis. Na ausência de um centro legitimador do discurso, o que aparece é a pluralidade de versões sobre os eventos. No enfrentamento dessa crise de fundamentação, Lopes, enquanto autor, assume a posição de um observador de segunda ordem. Toma distâncias das diferentes histórias disponíveis, tornando-as simples versões ou partes da verdade, requerendo a ação de um sujeito metodologicamente aparatado para recompor a unidade e coerência que devem caracterizar a “nua verdade”. A verdade que no vivido dos fatos, na ação histórica, parece ter sido perdida ou incapaz de ser percebida integralmente pelos próprios agentes.
Esse processo de subjetivação, ou seja, de criação de um autor/sujeito/competência capaz de produzir verdade resolve a percepção da multiplicidade dos relatos e, ao mesmo tempo, serve como esfera onde a ‘naturalidade’ do mundo pode ser recuperada enquanto verdade para todos. Ou seja, se o ser português é condição necessária para saber a verdade da ‘revolução’, essa verdade correria o risco de permanecer um conhecimento limitado àqueles que dela pudessem ter uma experiência direta. Ao estabelecer a voz autoral em torno de procedimentos formais previamente definidos, Lopes pode reivindicar novamente um tipo de integridade para um relato realístico, uma verdade sem fronteiras e território, mesmo que assentada na pré-compreensão do caráter sempre condicionado da história humana.

Luís de Camões (epopéia)

Luis de Camões viveu num momento de crise, como soldado participou de combates em Ceuta, na África, perdendo o olho direito. De volta a Portugal, freqüentou a corte.
Em 1552, foi preso por ferir um cortesão do rei, numa briga de rua. No ao seguinte, é solto é parte para Índia, a serviço de D. João III. Lá, participou de várias expedições militares, vivendo anos de pobreza e dificuldades. A benevolência de um vice-rei levou-o a Macau, na China, para exerce o compensador cargo de “provedor dos bens de defuntos e ausentes”. Má administração teria levado o poeta a perder o cargo e regressar prisioneiro para a Índia. O navio que o levava naufragou junto a foz do rio Mecom. Camões salvou-se a nado. Diz a tradição que nesse naufrágio teria parecido Dinamite, a chinesa amada de Camões, imortalizada em seus versos líricos.
Entre 1557 e 1569 esteve em Moçambique, “tão pobre que vivia de amigos” como disse Diogo Couto, que o encontrou na África. Nessa ocasião, Os lusíadas já estavam redigidos. Camões tinha pronto, também, o manuscrito original de um livro de poemas, chamado Parnaso, que lhe foi roubado e desapareceu.
Em 1570, de volta a Portugal, Camões luta para imprimir sua epopéia lusitana. Em 1572, após dois anos de demandas pelo alvará real e a licença da Inquisição, consegue, finalmente, ver publicada sua obra-prima: Os Lusíadas.
O jovem rei D. Sebastião, pelos serviços prestados, concede ao poeta uma modesta pensão, que não foi paga regularmente.
Os últimos anos foram de penúria. Doente e marginalizado, Camões morreu em 1580, sendo enterrado em cova rasa, no convento de Santa Ana, local hoje chamado de Campo de Santana. De fato, jamais se encontrou o tumulo de Camões, mas afirma-se que, anos após o falecimento do poeta, D. Gonçalo Coutinho mandara instalar uma lapide identificando o local. Esse marco se perdeu, com o terremoto que assolou Lisboa, no século XVIII. Hoje, há um tumulo de honra a Camões, situado no mosteiro dos Jerônimos, ao lado do de Vasco da Gama, o herói imortalizado pelo poeta em Os lusíadas.

5. A influência da crônica lopeana na epopéia Os lusíadas.

Para narrar a expedição de Vasco da Gama ao Oriente, datada de finais do séc. XV, Luís de Camões recorreu, sobretudo, à História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda, ao Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama, atribuído a Álvaro Velho, e à Ásia, de João de Barros. Porém nesta breve analise irei me deter mais especificamente nas inferências que as crônicas de Fernão Lopes obtiveram sobre o poema épico Os lusíadas.
Como já havia dito anteriormente, Camões utilizou alguns episódios das crônicas lopeanas, entre esses, encontra-se o episódio de Inês de Castro, em que o poeta ao transcrever as cenas, fez algumas adaptações, expondo assim, seu ponto de vista a respeito desse fato histórico.
A diferença que fica explicita veementemente nas cenas d’Os lusíadas se comparada a crônica de Fernão Lopes é a questão da presença de filhos de Inês de Castro no poema épico de Camões. Na narração lopeana em nenhum momento ele cita que Inês tinha filhos, mas, quando observamos n’Os lusíadas a cena em que Inês de Castro intercede pelos filhos ao rei D. Afonso IV isto fica bem nítido. Observe estas estrofes d’Os lusíadas de Camões:

E depois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assim dizia: [...]

A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

(canto III, est. 125 vv. 5-8/ 127, vv. 5-8).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

RODRIGUES, Medina; CASTRO, Dácio; ACHCAR; Chico; RAMOS, Paula. Literatura Portuguesa: 2ª. ed. São Paulo, Ática, 2006. 37 p.

ARAUJO, Valdei Lopes. A Emergência do Discurso Histórico na Crônica de Fernão Lopes. Revista de História e Estudos Culturais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Minas Gerais, v. 3, n. 2, p. 21-31, mar. 2006.

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia: traço comum a Os Lusíadas e a O bosque harmonioso, de Augusto Abelaira. Boletim do Centro de Estudos Portugueses. n. 12. Belo Horizonte,
Fale/UFMG, jul.1986/dez.1988. p. 150-156.

MACEDO, Helder. A poética da verdade d’Os Lusíadas. In: GIL, Fernando; MACEDO, Helder. Viagens do olhar. Lisboa: Campo das Letras, 1998. p. 121-141.

ABDALA JÚNIOR, Benjamin, PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1982.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões. In: ______.Lições de cultura e literatura portuguesas : séculos XV, XVI e XV. Coimbra: Coimbra Editora,1959.v.1

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 1979.

SARAIVA, Antonio José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17.ed. Porto: Porto Editora, 1996.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

FICÇÃO LITERÁRIA


Introdução

É hoje uma opinião amplamente aceita que os textos literários são de natureza ficcional. Por esta classificação, distinguem-se manifestamente dos textos que, não possuindo esta característica, são em geral relacionados ao pólo oposto à ficção, ou seja, à realidade.
A oposição entre a realidade e a ficção faz parte do repertorio elementar de nosso saber “implícito”, e com esta expressão, evidenciada pela sociologia do conhecimento, faz-se referencia ao repertorio de certezas que se mostra tão seguro a ponto de parecer evidente por si mesmo.
Os textos ficcionais serão de fato ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?
A relação opositiva entre a ficção e realidade retiraria da discussão sobre o fictício no texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais.
Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar nesta referencia, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então surge o imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma configuração no imaginativo, pela qual mostra composto de diversos atos de fingir.
Mas, com base na hipótese já mencionada, sempre permanece como características dos atos de fingir correspondentes à realização de uma transgressão especifica de limites.
Como produto de um autor, cada texto literário é uma forma determinada de tematização do mundo. Como esta forma não está dada de antemão pelo mundo a que o autor se refere, para que se imponha é preciso que seja nele implantado. Implantar não significa imitar as estruturas de organização previamente encontráveis, mas sim decompor. Daí resulta a seleção, necessária a cada texto ficcional, dos sistemas contextuais preexistentes, seja eles de natureza sócio-cultural ou mesmo literária.

A seleção

A seleção é uma transgressão de limites na medida em que os elementos acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação semântica ou sistemática ou sistemática dos sistemas de que foram tomados.
A seleção retira-os desta identificação e os converte em objeto da percepção. Os elementos contextuais que o texto integra não são em si fictícios, apenas a seleção é um ato de fingir pelo qual os sistemas, como campo de referencia, são entre si delimitados, pois suas fronteiras são transgredidas.
Se houvesse uma regra para a seleção, esta não seria uma transgressão e limites, mas apenas uma possibilidade permissível dentro de uma concepção vigente. Sendo o ato de seleção um ato de fingir, que, como transgressão de limites, possui o caráter de acontecimento, sua função se funda no que é por ele produzido.
Como o ato de fingir, a seleção possibilita então aprender a intencionalidade de um texto. Pois ela faz com que determinados sistemas de sentido do mundo da vida se convertam em campos de referencia do texto e estes, por sua vez, na interpretação do contexto. Ela, por fim, se manifesta no controle de tal interpretação, porquanto o campo de referencia único separa os elementos escolhidos do segundo plano que, por efeito da escolha, é excluído e, desta maneira, concede a visibilidade do mundo reunido no campo de referencia uma disposição perpesctivistica. Neste processo, esboçam-se os objetivos intencionais do texto, que deve sua realização à irrealização das realidades que são incluídas no texto.
É provável que a intenção não se revelem na psique, nem na consciência, mas que possa ser abordada apenas através das qualidades que se evidenciam na seletividade do texto face a seus sistemas contextuais. Não é possível o conhecimento da intenção autoral pelo que o tenha inspirado ou pelo que tenha desejado. Ela se revela na decomposição dos sistemas com que o texto se articula, para que nesse processo, deles se desprenda. Por conseguinte a intencionalidade do texto não se manifesta na consciência do autor, mais sim na decomposição dos campos de referencia do texto. Como tal, ela é algo que não se encontra no mundo dado correspondente. Tampouco ela é apenas algo imaginário; é a preparação de um imaginário para uso, que de seu lado, depende das circunstancias em que deve ocorrer.
A seleção é um ato de fingir, na medida em que por ela se assinala os campos de referencia do texto, com a finalidade de serem transgredidos. Origina-se assim a intencionalidade do texto, cuja característica consiste em nem ser uma realidade dos sistemas de referencia em que interveio, nem tampouco em materializar o imaginário como tal, porquanto possui uma determinação que não resulta dos sistemas a que se refere. Ela se mostra como “figura de transição” entre o real e o imaginário, com estatura da atualidade. Atualidade é a forma de expressão do acontecimento na medida em que não se limita a designar campos de referencia, mas os decompõe para transformar os elementos escolhidos no material de sua auto-apresentação. A atualidade se refere então ao processo pelo qual o imaginário opera no espaço do real.

A combinação

Como um ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intratextual na combinação dos elementos textuais, que abrange tanto a combinalidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações. A combinação é um ato de fingir por possuir a mesma caracterização básica: ser transgressão de limites.
Como ato de fingir, a combinação desde muito tem sido compreendida como uma marca característica da poesia, uma vez que se desejava distingui-la como ficção da realidade dada. Assim, por exemplo, Bacon descrevia a poesia como um processo combinatório “que pode a vontade estabelecer uniões e divórcios ilegais de coisas. Comumente ultrapassa a medida da natureza, unindo a seu bel prazer coisas que na natureza nunca viriam juntas e introduzindo outras que na natureza nunca aconteceriam.
Como o ato de fingir, a combinação cria relacionamentos intratextuais. Como o relacionamento é um produto do fingir, ele se revela, como a intencionalidade que aparece no processo de seleção. O relacionamento alcança esta faticidade especifica pelo grau de sua determinação, mas também pela influencia exercida nos elementos que ela relaciona entre si.
Como produto de um ato de fingir, o relacionamento é a configuração concreta de um imaginário. Este nunca pode se integrar totalmente na língua, embora o fictício, enquanto concretização do imaginário, não possa prescindir da determinação da formulação verbal, para que, por um lado, chame a atenção para o que se trata de representar e, por outro, para que introduza, por modalizações diversas, nos campos dos mundos existentes, o que se manifesta na representação.
Os atos de fingir no texto ficcional, até agora descritos, ou seja, os da seleção e os da combinação, diziam respeito a transgressão de limites entre texto e contexto, ou seja, a transgressão dos campos de referencia intratextuais. Daí evidenciar-se uma complexidade crescente. Com produto da combinação, o relacionamento não se referia apenas a elaboração destes campos de referencia a partir do material selecionado, mas ainda ao mutuo relacionamento destes campos. Isso nos leva a reconhecer uma diferenciação relativa a qualidade do fictício. Esta diferenciação ainda crescerá mais ao tratarmos agora doutro ato de fingir, que consiste no desnudamento de sua ficcionalidade.

Desnudamento

É característico da literatura, em sentidos latos, que se dá a conhecer como ficcional, a partir de um repertorio de signos, assim assinalando que é literatura e algo diverso da realidade. Assim, o sinal de ficção não designa nem mais a ficção, mas sim o contrato entre o autor e leitor, cuja regulamentação o texto comprova não como discurso, mas sim como discurso encenado. Deste modo, por exemplo, os gêneros literários se apresentam como regulamentações efetivas de largo prazo, que permitem uma multiplicidade de variações históricas nas condições contratuais vigentes entre o autor e o publico.
A literatura é capaz de tematizar estes processos. A curta travessia sobre o papel da ficção no discurso filosófico nos permitiu reconhecer duas coisas: 1. que a caracterização do fingir é um atributo central da ficção e que, se não aparecer com a suficiente clareza, deve ser revelado pela desmistificação; 2. se uma ficção se apresenta como tal, graças ao seu repertorio de sinais que carrega consigo, será necessária uma outra atitude face ao que ela contêm. O discurso filosófico deixa ver que a caça as ficções é guiada pelo esforço de que elas próprias não se convertam nos objetos daquela realidade que representam, assim também o desnudamento da ficção se mostra que o texto, como um fingido, não é idêntico ao que por ele se representa.
No entanto o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade, que, através da seleção, são retiradas tanto do contexto sócio-cultural, quanto da literatura previa ao texto. Assim retorna ao texto ficcional umas realidades de todo reconhecíveis, postas, entretanto agora sob o signo do fingimento. Por conseguinte, este mundo é posto entre parênteses para que se entenda que o mundo representado não é o mundo dado, mas que deve ser apenas entendido como se o fosse.
Pode até ser mesmo que a função da dissimulação seja manter intactos os critérios naturais, para que a ficção seja compreendida como uma realidade que possibilita o esclarecimento de realidades. Situação diversa se dá no caso de os critérios naturais serem postos entre parênteses, pois o parêntese implica que o mundo aí posto não é um objeto graças a si mesmo, mas objeto de uma encenação ou de uma consideração daquele tipo.
Resulta daí igualmente um traço característico de como se: pelos parênteses é sempre assinalada a presença de um aspecto da totalidade que, de sua parte, não pode ser uma qualidade do mundo representado, quando nada porque este foi constituído a partir de segmentos dos diversos sistemas contextuais do texto.
Pois a ficção sempre ocorre em virtude de seu uso pragmático. Por conseguinte, também a realidade representada no texto não deve ser tomada como tal: ela é a referencia de algo que ela não é, mesmo se este algo se torna representável por ela.
Esta constelação de como se caracteriza a literatura desde o inicio da modernidade. É característico disso o gênero bucólico renascentista, em que a ficção pela primeira vez se automatizou. A literatura recebe a característica geral de mundo representado e posto entre parênteses.

Como se


É necessária uma abordagem mais aprofundada do como se para que se entendam suas conseqüências. A partícula da frase condicional significa que a condição por ela estabelecida é irreal ou impossível. Julgar o mundo emergente no texto ficcional como se ele se confundisse com o mundo real significa ainda que se almeja encontrar um elemento de comparação, que, entretanto se limita a partícula de condicionalidade. Entender o mundo emergente no texto como se fosse um mundo significa relacioná-lo com algo que ele não é. Assim o conjunto de partículas de como se serve para estabelecer equivalências entre algo existente e as conseqüências de um caso irreal ou impossível. Se o texto ficcional relaciona o mundo por ele representado a este impossível, a este impossível faltará precisamente a determinação que alcança por sua representação. Podemos chamá-lo de imaginário porque os atos de fingir se relacionam com o imaginário. Portanto, o como se significa que o mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, dever ser representado como se o fosse.
É de se ressaltar que esta atividade imaginativa dever ter alguma pratica, alguma finalidade: só neste caso, a função imaginativa é conseqüente, pois não se trata, sem que haja alguma finalidade, de tornar-se como real algo que é irreal. Se assim o imaginário ganha a sua configuração suficiente pela finalidade, deve-se observar que o mundo representado no texto ainda não é a finalidade do texto; ao contrário, ele constitui, como termo de comparação determinado, a condição para que se torne representável a dimensão do uso, indicada pelo parêntese.
Com o como se se indica a orientação desta remissão: o mundo representado há de se tomar como se fosse um mundo. Daí resulte que o mundo representado no texto não se refere a si mesmo e que, por seu caráter remissivo, representa algo diverso de si próprio. Mostra-se aqui de novo o modo característico do fictício, ser transgressão de limites. De todo modo, deve-se destacar o fato de que com a ficção do como se ocorre a transgressão daquilo que, de sua parte, como mundo representado no texto. Já materializa um produto proveniente do ato de fingir.
No momento porem que a direção suprimiu os sinais ficcionais e assim eliminou o como se, tornou-se representação de uma realidade determinada e verificável no mundo empírico dos espectadores.
Ao mesmo tempo, porém, o mundo representado no texto é uma materialidade que, por seu caráter de como se, não trazem si mesmo nem sua determinação, nem sua verdade, que devem ser procuradas e encontradas apenas em relação com algo outro.
Pois, se o como se assinala que o mundo representado deve ser visto como se fosse um mundo – sem que seja tratado como tal – então é necessário manter um certo grau de designação para que o mundo se possa transformar na condicionalidade intencionada. Esta sujeição da função designativa à remissiva mostra que o mundo representado, enquanto designa algo, tem apenas o caráter de análogo, pelo qual se exemplifica o mundo mediante a forma de um determinado mundo.
Se o mundo do texto se caracteriza pelo como se, assim assinalando que ai se apresenta para ser visto ou concebido como um mundo, isso significa que sempre algo diverso deve ser introduzido no mundo representado no texto. Pois o elemento de comparação na expressão como se é um impossível ou um irreal, não podendo ser, portanto uma parte do mundo representado. Por isso o mundo do texto, sob o signo do como se, não mais pode ser designar a si mesmo, mas sim remeter ao que não é. Noutras palavras: embora ele não seja o mundo real, deve ser considerado como tal e, deste modo, a finalidade, que começa a se esboçar pelo ato de remissão, possa ser compreendida como possibilidade de seu tornar-se visível. Por esta visibilidade não se confunde com nenhuma característica do mundo.
Torna-se deste modo claro que a ficção do como se utiliza o mundo representado para suscitar reações efetivas nos receptores dos textos ficcionais. Imaginar o mundo do texto como se fosse um mundo é, por conseguinte, a condição para que se produzam atividades de orientação. Assim, se por um lado, se transgredi o mundo representado no texto, por outro, o elemento de comparação visado no como se recebe uma certa concreção.
A ficção como se provoca, portanto, um ato de representação dirigido a um determinado mundo, previamente dado a consciência imaginante, razão por que este ato de representação não se relaciona nem subjetiva, nem objetivamente, com as referencias.
Se relembrarmos que a ficção do como se põe entre parênteses o mundo representado e que este pôr entre parênteses remete a um aspecto da totalidade, que por ele se impõe, é então de se inferir que, no caso da ficção, este aspecto da totalidade é a finalidade de seu uso. Podemos agora descrevê-lo estruturalmente da seguinte maneira: o mundo do texto entre parênteses não se representa a si mesmo, mas a um outro. Este outro constitui a possibilidade de seu torna-se visível, que, ao mesmo tempo, provoca impressões afetivas no sujeito, que, de sua parte, causam atividades de orientação e, desta forma, reações sobre o mundo do texto. Causar sobre o mundo seria então a função de uso produzida pelo como se, para isso, é necessário irrealizar-se o mundo do texto, para assim transformá-lo em análogo, ou seja, em exemplificação do mundo, para que com isso se provoque uma relação de reação quanto ao mundo.
Pois o mundo representado no texto é, por seu lado, produto do fingir, resultante dos atos de seleção e combinação. Por conseguinte, este mundo do texto não teria nada de idêntico ao mundo dado, pois intencionalidade e o relacionamento, que constituem a base de sua organização, sem qualidades do mundo dado. Daí que a reação desperta pelo como se do mundo do texto, tanto pode se referir a este, quanto a realidade empírica que, pelo análogo textualmente estabelecido, é visada a partir de uma perspectiva que não se confunde com um certo mundo da vida.
A ficção do como se também aponta para uma importante diferença entre o fictício e o simbólico. O aspecto da totalidade, visado pelo parêntese em que é posto o como se, tem o caráter de finalidade, e de finalidade de uso, pois a ficção se determina por meio de seu emprego pragmático. É o oposto do que se dá com o aspecto da totalidade do símbolo, que resulta de uma norma e que deve se fazer presente pelo trabalho de representação da figura simbólica.
Se a ficção do como se provoca atividade de orientação e de representação nos receptores e, portanto, despertam reações, é de se perguntar em que medida o mundo irrealizado do texto possui efeitos retroativos sobre os receptores, a partir da representabilidade nele acumulada. Noutras palavras, a ficção do como se condiciona apenas transgressão de limites do mundo posto entre parênteses, ou também das atividades provocadas nos receptores? Ou seja, a representabilidade daquilo que é provocado pelo como se significa que nossas capacidades se põem a serviço desta irrealidade para, no processo de irrealização, transformá-la em realidade.

Conclusão

Os atos de fingir, que aparecem no texto ficcional, apresentam um traço geral dominante: serem atos de transgressão.
Na seleção, são transgredidos os sistemas contextuais do texto, mas também o é a imanência do próprio texto, por incluir em seu repertorio a transgressão dos sistemas contextuais selecionados.
Na combinação, ocorre uma transgressão dos espaços semânticos intratextualmente constituídos, o que vale tanto para a ruptura de limites do significado lexical, quanto para a constituição do acontecimento central a narração, o qual se manifesta na transgressão dos heróis do romance.
No como se, a ficção de desnuda como tal e assim transgride o mundo representado no texto, a partir da combinação e da seleção. Ele põe entre parênteses este mundo e assim evidencia que não se pode proferir nenhuma afirmação verdadeira acerca do mundo aí posta.
Em principio, o desnudamento assinala duas coisas. Em primeiro lugar, significa para o destinatário da ficção que ela deve ser tomada como tal. Além disso, afirma que aqui domina a hipótese de que há de se supor como mundo o mundo representado apenas para que assim se mostre que é representação de algo outro. Sucede por fim uma última transgressão que o texto provoca no repertorio de experiências dos receptores; pois a atividade de orientação provocada se aplica a um mundo irreal, cuja atualização tem por conseqüência uma irrealização temporária dos receptores.
Os referidos atos de fingir se originam uns dos outros. Podemos distingui-los sobre tudo porque suas funções são distintas. Seu traço comum, serem atos de transgressão, se diferencia na especificidade de seu respectivo emprego. Este conduto deve-se relacionar ao traço comum, pois só por ele se realiza a função do fictício no texto ficcional.

LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1983. Volume II. Autor: Wolfgang Iser