quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

FICÇÃO LITERÁRIA


Introdução

É hoje uma opinião amplamente aceita que os textos literários são de natureza ficcional. Por esta classificação, distinguem-se manifestamente dos textos que, não possuindo esta característica, são em geral relacionados ao pólo oposto à ficção, ou seja, à realidade.
A oposição entre a realidade e a ficção faz parte do repertorio elementar de nosso saber “implícito”, e com esta expressão, evidenciada pela sociologia do conhecimento, faz-se referencia ao repertorio de certezas que se mostra tão seguro a ponto de parecer evidente por si mesmo.
Os textos ficcionais serão de fato ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?
A relação opositiva entre a ficção e realidade retiraria da discussão sobre o fictício no texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais.
Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar nesta referencia, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então surge o imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha a sua marca própria, que é de provocar a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma configuração no imaginativo, pela qual mostra composto de diversos atos de fingir.
Mas, com base na hipótese já mencionada, sempre permanece como características dos atos de fingir correspondentes à realização de uma transgressão especifica de limites.
Como produto de um autor, cada texto literário é uma forma determinada de tematização do mundo. Como esta forma não está dada de antemão pelo mundo a que o autor se refere, para que se imponha é preciso que seja nele implantado. Implantar não significa imitar as estruturas de organização previamente encontráveis, mas sim decompor. Daí resulta a seleção, necessária a cada texto ficcional, dos sistemas contextuais preexistentes, seja eles de natureza sócio-cultural ou mesmo literária.

A seleção

A seleção é uma transgressão de limites na medida em que os elementos acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação semântica ou sistemática ou sistemática dos sistemas de que foram tomados.
A seleção retira-os desta identificação e os converte em objeto da percepção. Os elementos contextuais que o texto integra não são em si fictícios, apenas a seleção é um ato de fingir pelo qual os sistemas, como campo de referencia, são entre si delimitados, pois suas fronteiras são transgredidas.
Se houvesse uma regra para a seleção, esta não seria uma transgressão e limites, mas apenas uma possibilidade permissível dentro de uma concepção vigente. Sendo o ato de seleção um ato de fingir, que, como transgressão de limites, possui o caráter de acontecimento, sua função se funda no que é por ele produzido.
Como o ato de fingir, a seleção possibilita então aprender a intencionalidade de um texto. Pois ela faz com que determinados sistemas de sentido do mundo da vida se convertam em campos de referencia do texto e estes, por sua vez, na interpretação do contexto. Ela, por fim, se manifesta no controle de tal interpretação, porquanto o campo de referencia único separa os elementos escolhidos do segundo plano que, por efeito da escolha, é excluído e, desta maneira, concede a visibilidade do mundo reunido no campo de referencia uma disposição perpesctivistica. Neste processo, esboçam-se os objetivos intencionais do texto, que deve sua realização à irrealização das realidades que são incluídas no texto.
É provável que a intenção não se revelem na psique, nem na consciência, mas que possa ser abordada apenas através das qualidades que se evidenciam na seletividade do texto face a seus sistemas contextuais. Não é possível o conhecimento da intenção autoral pelo que o tenha inspirado ou pelo que tenha desejado. Ela se revela na decomposição dos sistemas com que o texto se articula, para que nesse processo, deles se desprenda. Por conseguinte a intencionalidade do texto não se manifesta na consciência do autor, mais sim na decomposição dos campos de referencia do texto. Como tal, ela é algo que não se encontra no mundo dado correspondente. Tampouco ela é apenas algo imaginário; é a preparação de um imaginário para uso, que de seu lado, depende das circunstancias em que deve ocorrer.
A seleção é um ato de fingir, na medida em que por ela se assinala os campos de referencia do texto, com a finalidade de serem transgredidos. Origina-se assim a intencionalidade do texto, cuja característica consiste em nem ser uma realidade dos sistemas de referencia em que interveio, nem tampouco em materializar o imaginário como tal, porquanto possui uma determinação que não resulta dos sistemas a que se refere. Ela se mostra como “figura de transição” entre o real e o imaginário, com estatura da atualidade. Atualidade é a forma de expressão do acontecimento na medida em que não se limita a designar campos de referencia, mas os decompõe para transformar os elementos escolhidos no material de sua auto-apresentação. A atualidade se refere então ao processo pelo qual o imaginário opera no espaço do real.

A combinação

Como um ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intratextual na combinação dos elementos textuais, que abrange tanto a combinalidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações. A combinação é um ato de fingir por possuir a mesma caracterização básica: ser transgressão de limites.
Como ato de fingir, a combinação desde muito tem sido compreendida como uma marca característica da poesia, uma vez que se desejava distingui-la como ficção da realidade dada. Assim, por exemplo, Bacon descrevia a poesia como um processo combinatório “que pode a vontade estabelecer uniões e divórcios ilegais de coisas. Comumente ultrapassa a medida da natureza, unindo a seu bel prazer coisas que na natureza nunca viriam juntas e introduzindo outras que na natureza nunca aconteceriam.
Como o ato de fingir, a combinação cria relacionamentos intratextuais. Como o relacionamento é um produto do fingir, ele se revela, como a intencionalidade que aparece no processo de seleção. O relacionamento alcança esta faticidade especifica pelo grau de sua determinação, mas também pela influencia exercida nos elementos que ela relaciona entre si.
Como produto de um ato de fingir, o relacionamento é a configuração concreta de um imaginário. Este nunca pode se integrar totalmente na língua, embora o fictício, enquanto concretização do imaginário, não possa prescindir da determinação da formulação verbal, para que, por um lado, chame a atenção para o que se trata de representar e, por outro, para que introduza, por modalizações diversas, nos campos dos mundos existentes, o que se manifesta na representação.
Os atos de fingir no texto ficcional, até agora descritos, ou seja, os da seleção e os da combinação, diziam respeito a transgressão de limites entre texto e contexto, ou seja, a transgressão dos campos de referencia intratextuais. Daí evidenciar-se uma complexidade crescente. Com produto da combinação, o relacionamento não se referia apenas a elaboração destes campos de referencia a partir do material selecionado, mas ainda ao mutuo relacionamento destes campos. Isso nos leva a reconhecer uma diferenciação relativa a qualidade do fictício. Esta diferenciação ainda crescerá mais ao tratarmos agora doutro ato de fingir, que consiste no desnudamento de sua ficcionalidade.

Desnudamento

É característico da literatura, em sentidos latos, que se dá a conhecer como ficcional, a partir de um repertorio de signos, assim assinalando que é literatura e algo diverso da realidade. Assim, o sinal de ficção não designa nem mais a ficção, mas sim o contrato entre o autor e leitor, cuja regulamentação o texto comprova não como discurso, mas sim como discurso encenado. Deste modo, por exemplo, os gêneros literários se apresentam como regulamentações efetivas de largo prazo, que permitem uma multiplicidade de variações históricas nas condições contratuais vigentes entre o autor e o publico.
A literatura é capaz de tematizar estes processos. A curta travessia sobre o papel da ficção no discurso filosófico nos permitiu reconhecer duas coisas: 1. que a caracterização do fingir é um atributo central da ficção e que, se não aparecer com a suficiente clareza, deve ser revelado pela desmistificação; 2. se uma ficção se apresenta como tal, graças ao seu repertorio de sinais que carrega consigo, será necessária uma outra atitude face ao que ela contêm. O discurso filosófico deixa ver que a caça as ficções é guiada pelo esforço de que elas próprias não se convertam nos objetos daquela realidade que representam, assim também o desnudamento da ficção se mostra que o texto, como um fingido, não é idêntico ao que por ele se representa.
No entanto o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade, que, através da seleção, são retiradas tanto do contexto sócio-cultural, quanto da literatura previa ao texto. Assim retorna ao texto ficcional umas realidades de todo reconhecíveis, postas, entretanto agora sob o signo do fingimento. Por conseguinte, este mundo é posto entre parênteses para que se entenda que o mundo representado não é o mundo dado, mas que deve ser apenas entendido como se o fosse.
Pode até ser mesmo que a função da dissimulação seja manter intactos os critérios naturais, para que a ficção seja compreendida como uma realidade que possibilita o esclarecimento de realidades. Situação diversa se dá no caso de os critérios naturais serem postos entre parênteses, pois o parêntese implica que o mundo aí posto não é um objeto graças a si mesmo, mas objeto de uma encenação ou de uma consideração daquele tipo.
Resulta daí igualmente um traço característico de como se: pelos parênteses é sempre assinalada a presença de um aspecto da totalidade que, de sua parte, não pode ser uma qualidade do mundo representado, quando nada porque este foi constituído a partir de segmentos dos diversos sistemas contextuais do texto.
Pois a ficção sempre ocorre em virtude de seu uso pragmático. Por conseguinte, também a realidade representada no texto não deve ser tomada como tal: ela é a referencia de algo que ela não é, mesmo se este algo se torna representável por ela.
Esta constelação de como se caracteriza a literatura desde o inicio da modernidade. É característico disso o gênero bucólico renascentista, em que a ficção pela primeira vez se automatizou. A literatura recebe a característica geral de mundo representado e posto entre parênteses.

Como se


É necessária uma abordagem mais aprofundada do como se para que se entendam suas conseqüências. A partícula da frase condicional significa que a condição por ela estabelecida é irreal ou impossível. Julgar o mundo emergente no texto ficcional como se ele se confundisse com o mundo real significa ainda que se almeja encontrar um elemento de comparação, que, entretanto se limita a partícula de condicionalidade. Entender o mundo emergente no texto como se fosse um mundo significa relacioná-lo com algo que ele não é. Assim o conjunto de partículas de como se serve para estabelecer equivalências entre algo existente e as conseqüências de um caso irreal ou impossível. Se o texto ficcional relaciona o mundo por ele representado a este impossível, a este impossível faltará precisamente a determinação que alcança por sua representação. Podemos chamá-lo de imaginário porque os atos de fingir se relacionam com o imaginário. Portanto, o como se significa que o mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, dever ser representado como se o fosse.
É de se ressaltar que esta atividade imaginativa dever ter alguma pratica, alguma finalidade: só neste caso, a função imaginativa é conseqüente, pois não se trata, sem que haja alguma finalidade, de tornar-se como real algo que é irreal. Se assim o imaginário ganha a sua configuração suficiente pela finalidade, deve-se observar que o mundo representado no texto ainda não é a finalidade do texto; ao contrário, ele constitui, como termo de comparação determinado, a condição para que se torne representável a dimensão do uso, indicada pelo parêntese.
Com o como se se indica a orientação desta remissão: o mundo representado há de se tomar como se fosse um mundo. Daí resulte que o mundo representado no texto não se refere a si mesmo e que, por seu caráter remissivo, representa algo diverso de si próprio. Mostra-se aqui de novo o modo característico do fictício, ser transgressão de limites. De todo modo, deve-se destacar o fato de que com a ficção do como se ocorre a transgressão daquilo que, de sua parte, como mundo representado no texto. Já materializa um produto proveniente do ato de fingir.
No momento porem que a direção suprimiu os sinais ficcionais e assim eliminou o como se, tornou-se representação de uma realidade determinada e verificável no mundo empírico dos espectadores.
Ao mesmo tempo, porém, o mundo representado no texto é uma materialidade que, por seu caráter de como se, não trazem si mesmo nem sua determinação, nem sua verdade, que devem ser procuradas e encontradas apenas em relação com algo outro.
Pois, se o como se assinala que o mundo representado deve ser visto como se fosse um mundo – sem que seja tratado como tal – então é necessário manter um certo grau de designação para que o mundo se possa transformar na condicionalidade intencionada. Esta sujeição da função designativa à remissiva mostra que o mundo representado, enquanto designa algo, tem apenas o caráter de análogo, pelo qual se exemplifica o mundo mediante a forma de um determinado mundo.
Se o mundo do texto se caracteriza pelo como se, assim assinalando que ai se apresenta para ser visto ou concebido como um mundo, isso significa que sempre algo diverso deve ser introduzido no mundo representado no texto. Pois o elemento de comparação na expressão como se é um impossível ou um irreal, não podendo ser, portanto uma parte do mundo representado. Por isso o mundo do texto, sob o signo do como se, não mais pode ser designar a si mesmo, mas sim remeter ao que não é. Noutras palavras: embora ele não seja o mundo real, deve ser considerado como tal e, deste modo, a finalidade, que começa a se esboçar pelo ato de remissão, possa ser compreendida como possibilidade de seu tornar-se visível. Por esta visibilidade não se confunde com nenhuma característica do mundo.
Torna-se deste modo claro que a ficção do como se utiliza o mundo representado para suscitar reações efetivas nos receptores dos textos ficcionais. Imaginar o mundo do texto como se fosse um mundo é, por conseguinte, a condição para que se produzam atividades de orientação. Assim, se por um lado, se transgredi o mundo representado no texto, por outro, o elemento de comparação visado no como se recebe uma certa concreção.
A ficção como se provoca, portanto, um ato de representação dirigido a um determinado mundo, previamente dado a consciência imaginante, razão por que este ato de representação não se relaciona nem subjetiva, nem objetivamente, com as referencias.
Se relembrarmos que a ficção do como se põe entre parênteses o mundo representado e que este pôr entre parênteses remete a um aspecto da totalidade, que por ele se impõe, é então de se inferir que, no caso da ficção, este aspecto da totalidade é a finalidade de seu uso. Podemos agora descrevê-lo estruturalmente da seguinte maneira: o mundo do texto entre parênteses não se representa a si mesmo, mas a um outro. Este outro constitui a possibilidade de seu torna-se visível, que, ao mesmo tempo, provoca impressões afetivas no sujeito, que, de sua parte, causam atividades de orientação e, desta forma, reações sobre o mundo do texto. Causar sobre o mundo seria então a função de uso produzida pelo como se, para isso, é necessário irrealizar-se o mundo do texto, para assim transformá-lo em análogo, ou seja, em exemplificação do mundo, para que com isso se provoque uma relação de reação quanto ao mundo.
Pois o mundo representado no texto é, por seu lado, produto do fingir, resultante dos atos de seleção e combinação. Por conseguinte, este mundo do texto não teria nada de idêntico ao mundo dado, pois intencionalidade e o relacionamento, que constituem a base de sua organização, sem qualidades do mundo dado. Daí que a reação desperta pelo como se do mundo do texto, tanto pode se referir a este, quanto a realidade empírica que, pelo análogo textualmente estabelecido, é visada a partir de uma perspectiva que não se confunde com um certo mundo da vida.
A ficção do como se também aponta para uma importante diferença entre o fictício e o simbólico. O aspecto da totalidade, visado pelo parêntese em que é posto o como se, tem o caráter de finalidade, e de finalidade de uso, pois a ficção se determina por meio de seu emprego pragmático. É o oposto do que se dá com o aspecto da totalidade do símbolo, que resulta de uma norma e que deve se fazer presente pelo trabalho de representação da figura simbólica.
Se a ficção do como se provoca atividade de orientação e de representação nos receptores e, portanto, despertam reações, é de se perguntar em que medida o mundo irrealizado do texto possui efeitos retroativos sobre os receptores, a partir da representabilidade nele acumulada. Noutras palavras, a ficção do como se condiciona apenas transgressão de limites do mundo posto entre parênteses, ou também das atividades provocadas nos receptores? Ou seja, a representabilidade daquilo que é provocado pelo como se significa que nossas capacidades se põem a serviço desta irrealidade para, no processo de irrealização, transformá-la em realidade.

Conclusão

Os atos de fingir, que aparecem no texto ficcional, apresentam um traço geral dominante: serem atos de transgressão.
Na seleção, são transgredidos os sistemas contextuais do texto, mas também o é a imanência do próprio texto, por incluir em seu repertorio a transgressão dos sistemas contextuais selecionados.
Na combinação, ocorre uma transgressão dos espaços semânticos intratextualmente constituídos, o que vale tanto para a ruptura de limites do significado lexical, quanto para a constituição do acontecimento central a narração, o qual se manifesta na transgressão dos heróis do romance.
No como se, a ficção de desnuda como tal e assim transgride o mundo representado no texto, a partir da combinação e da seleção. Ele põe entre parênteses este mundo e assim evidencia que não se pode proferir nenhuma afirmação verdadeira acerca do mundo aí posta.
Em principio, o desnudamento assinala duas coisas. Em primeiro lugar, significa para o destinatário da ficção que ela deve ser tomada como tal. Além disso, afirma que aqui domina a hipótese de que há de se supor como mundo o mundo representado apenas para que assim se mostre que é representação de algo outro. Sucede por fim uma última transgressão que o texto provoca no repertorio de experiências dos receptores; pois a atividade de orientação provocada se aplica a um mundo irreal, cuja atualização tem por conseqüência uma irrealização temporária dos receptores.
Os referidos atos de fingir se originam uns dos outros. Podemos distingui-los sobre tudo porque suas funções são distintas. Seu traço comum, serem atos de transgressão, se diferencia na especificidade de seu respectivo emprego. Este conduto deve-se relacionar ao traço comum, pois só por ele se realiza a função do fictício no texto ficcional.

LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1983. Volume II. Autor: Wolfgang Iser

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